Semana atrasada (ou retrasada, me perco nessa contagem pregressa do tempo) eu estava contando a uma amiga que precisava cozinhar ovos pra semana.
— Como assim cozinhar ovos pra uma semana inteira?
— Assim: cozinhando bem os ovos e guardando ainda com casca na geladeira por até uma semana.
— Uma vez perguntei pra minha nutricionista se eu podia fazer isso e ela fez uma careta.
E eu fiquei com isso na cabeça até a hora de cozinhar os ovos. Sei que o consumo de ovos cozidos guardados ainda sem descascar na geladeira por até uma semana é seguro, e sei também que as características dos ovos não se alteram e que se estiverem bem fechados não dão e nem pegam cheiro (junte aqui uma mistura de conhecimento técnico — sou engenheiro de alimentos — e o fato de eu já ter feito isso inúmeras vezes). Então porque a careta?
Tenho duas teorias, mas aqui só vou pegar uma delas: a do ótimo, bom e "serve". Isso era papo de outra amiga, que acabava colocando isso como uma hierarquia nas opções da vida. Tem situações em que podemos escolher o ótimo, em outras o bom, e em outras… nos contentamos com o "serve". Não é uma escala difícil de imaginar, mas hoje a considero limitada por três principais motivos:
nem sempre há 3 opções, e essa pequena escala pode na verdade ser um gradiente mais detalhado;
os pontos da escala variam muito de pessoa pra pessoa. Pra mim umas férias ótimas seriam ficar com a família em Minas, para outra pessoa, pedalar centenas de km nos Andes, etc.;
existe uma alternativa que é menos que "serve", é o "não/nada".
Entre essas escalas eu só lembro de "o ótimo é inimigo do bom", mas isso considerando que o ótimo existe ao menos como possibilidade. E existe? Ou é apenas um ideal platônico?
Cozinhar os ovos pra semana pra mim é o bom, pra nutricionista da minha amiga talvez seja o "serve" ou "não". Quando comparado com a possibilidade de cozinhar ovos no momento do consumo deve ser mesmo, isso seria ótimo. Mas no meu caso, é um não. Minha escala não vai de "ovos pra semana" a "cozinhar cada um no momento do consumo", ela vai de "não cozinhar e acabar comendo frito ou mexido ou deixar estragar ou pior ainda pedir um delivery" a "cozinhar pra semana". Escrevendo agora vejo como é um exemplo bobo mas que serve pra tanta coisa na vida.
Me identifico com uns tantos vídeos de pessoas falando de se fazer o que se dá conta, que às vezes o seu melhor é muito pouco e é isso aí (links no final da newsletter). Em tempos de quiet quitting não sei se essa postura é sempre consciente. Tem dias que minha excelência é fazer o mínimo bem feito, o "serve". Em tempos de tanta cobrança e sobrecarga e de ter que dar conta de trabalho, casa, alimentação, atividade física, manter amizades, família, etc pra algumas coisas eu serei o "serve" mesmo, em algumas dessas disciplinas vou passar com média e olhe lá.
Na pandemia (lembram de 2020, que loucura! Parece que faz uns três anos!) tivemos que ensinar remotamente. Não EAD porque EAD tem técnicas, planejamento e ferramentas específicos. Foi "ensino remoto emergencial" mesmo. Vez ou outra via (ou lia) um colega ou aluno ou algum avulso nas redes sociais lamentando em como isso não era tão bom quanto o ensino presencial. Mas a sala de aula concreta não passava de uma miragem, um ótimo teórico, inexistente. A comparação não era entre o ensino remoto emergencial e o presencial: era entre o ensino remoto emergencial e ensino nenhum. O "serve" passou a ser ótimo naquelas circunstâncias.
Cozinhar ovos pra semana me lembrou dessa lição, e na atual sobrecarga acho que vou tirar uns momentos para pensar de quais ótimos posso abrir mão. Ou melhor: de quais ilusões de ótimos eu posso abrir mão para viver a concretude do que dou conta sem pirar (mais). Que tenhamos uma boa semana e nos pacifiquemos com nossos ótimos, bons e "serves"!
No mais, sem mais,
Abraços ictiomercuriais,
Thiago Ambrósio Lage (@thamblage)
Drops
Por um momento num papo com uma amiga, cogitei chamar esta edição de “Ode à mediocridade", mas mediocridade é das palavras que odeio porque sempre que falamos temos que lembrar o significado (tá no mesmo time de ignorante, qualidade, …). E além disso, acho injusto chamar os nosso bons e serves de medíocres quando muitas vezes estão justo no topo da escala.
Refinando os pensamentos do futuro da newsletter, acho mais pro meio/fim de junho já vem novidade. E nesse caminho, uma enquete rápida.
Quebrando a tradição, nada de playlist, mas sim três links de vídeos curtos (um do youtube, um do instagram e um do tiktok) de atrizes falando sobre possibilidades e limitações. Espero que curtam!
Deborah Secco mandando a real que a gente é o que a gente consegue ser;
Nathalia Cruz falando sobre transparência (aparência?) e vulnerabilidade;
Fernanda Souza comentando sobre como entender (e não se deixar afetar por) as limitações dos outros.
Romantífica (vulgo meu livro mais recente) está no mundo! No livro trago contos que exploram a interface entre ficção científica, romance e relacionamentos (explico um pouco aqui). Quer comprar o seu exemplar? Basta me mandar um e-mail, mensagem, DM que mando um pra você! Ou se preferir, pode comprar no site da editora.
Vila Substack
Este texto não nasceu no vácuo, além do gatilho dos ovos cozidos, muito tem se falado aqui sobre rendimento, sucesso, ambições, medidas, réguas e sobre essa exaustão difusa. Seguem algumas recomendações de textos que me tocaram:
Obrigado pela leitura!
Se gostou da newsletter, pode querer conferir o que tenho produzido como escritor em meu site, e como podcaster no Incêndio na Escrivaninha, junto das escritoras Ana Rüsche e Vanessa Guedes. Ou pode querer apenas me seguir nas redes twitter, instagram e facebook e ficar por dentro de minhas bobagens e novidades.
Eu amei! Olhando com uma perspectiva materna isso me pegou muito. A gente se cobra muito pra fazer o ótimo SEMPRE porque é o que um filho merece. Mas na maioria das vezes a gente só faz o que serve porque não dá pra encaixar toda essa bagaceira de profissional, pessoal, casa, família, bicho, trabalho etc numa pessoa só. O que serve, o mínimo, um bom lembrete
Textos astrológicos e de tarot, por favorzinho! Quero muito ler seu olhar simbólico sobre essas coisas 🦚