Onde fica o inferno afinal? Não o astral, e nem tampouco o de Sartre: como disse na última edição, creio que o paraíso são os outros. Já o inferno… acho que descobri onde fica. Ou quando.
No encontro mais recente do Filamentos, projeto da escritora
em parceria com a Editora , tivemos um papo sobre a catástrofe que assola o Rio Grande do Sul, e também sobre esperança. Aí sempre lembro de Dante e seu Inferno, onde a frase de boas vindas é "vós que entrai, abandonai toda a esperança". Uma das frases que me marca, e às vezes brinco com ela ao dar as boas vindas a alguém na vida acadêmica.Em minha ópera favorita, Orfeo de Monteverdi, a Esperança personificada, ao deixar o herói na entrada do reino de Hades, entoa a famosa citação. A partir dali, Orfeu estaria por sua conta e risco. Ele se despede de sua dolcissima Speranza, se perguntando o que será de si. E o pobre Orfeu, sem a Esperança, conhece o Inferno. É isso, me desculpe Sartre, mas o inferno não são os outros: o inferno é dentro da gente, quando não há esperança.
No video abaixo você pode apreciar a música, com legendas em inglês (que podem ser traduzidas automaticamente). Se a minutagem do link estiver com problema, Orfeu começa a cantar para a Esperança em 54:24.
Na etimologia da palavra esperança, lá nos tempos do latim clássico, spes era a confiança em algo positivo. Daí vieram esperança e esperar, mas quem espera, espera alguma coisa, qualquer coisa. Já a esperança, a expectativa em torno do que é bom, é algo que, em português, ou a gente tem, ou não tem, e como tal, algo que pode ser perdido. Já no inglês, por exemplo, to hope é ter esperança de algo, enquanto o simples ato de esperar é to wait. Fico viajando nisso, que talvez precisássemos de um verbo exclusivo também, para deixar explícito que esperança é algo ativo, que se cultiva. Pesquisei e encontrei o verbo esperançar, que significa dar esperança a alguém. Ainda não é. O "esperançar" freireano se aproxima muito bem do que quero dizer, acho que é até sinônimo, mas como a palavra tem outro significado no dicionário, que tal esperancear?
Outro conceito que me vem à mente é o da Obsessão Positiva de Octavia Butler. É acreditar e fazer por onde. Não desistir. Afastar o inferno. Presente neste artigo, este conceito é retomado de forma brilhante em sua obra A Parábola do Semeador, um livro visceral e pungente sobre a vida após o colapso. Recomendo demais e sempre a leitura, como já fiz aqui mesmo na Mercúrio em Peixes.
Tenho um causo um pouco bobo em torno de uma palavra parecida com esperança, Esperanto. Eu estudei a língua uma época, e em uma papo com um amiguinho da internet, ele gentilmente me corrigiu quando eu digitei esperanto: o nome da língua era Esperanto, com e maiúsculo. Com e minúsculo, esperanto é apenas um homo, kiu esperas, um homem que espera? Não. O ato de esperar qualquer coisa, assim como inglês, tem um outro verbo: atendi. Esperi significa ter esperança. Esperanto seria talvez uma auto idealização do criador da língua, Zamenhof, de esperança que a língua pudesse ser utilizada como língua auxiliar universal.
Olhando em retrospecto, lidar com o Esperanto me ensinou também como a esperança precisa ser algo ativo. Por mais que a ideia e intenção da língua fossem justas, existem haters de Esperanto. Não falo aqui de críticos ao Esperanto, pois isso até muitos esperantistas são. A língua é excessivamente calcada em línguas europeias, e, assim como tantas línguas naturais, é machista em sua estrutura e construções. Colonialismo e patriarcado contaminaram o Esperanto, que mesmo sendo artificial não deixa de ser produto do seu meio e seu tempo. Mas a parada do hater é outra, vem mais da ignorância, já que a crítica pressupõe algum conhecimento, enquanto o ódio é de graça. "É uma língua que já nasceu morta" e "quase ninguém fala isso" são velhos chavões, mas rebater isso é coisa pra outra hora.
Essas questões voltaram à minha mente no começo do ano, quando estive em São Paulo. Fiquei surpreso com a grafia Jakobo na capa de uma tradução de Esaú e Jacó numa exposição sobre Machado de Assis. Imaginei que fosse a tradução para alguma língua eslava ou para o alemão, mas me alegrei ao ver na legenda que a obra estava em Esperanto. Comentei em voz alta, estava entre amigos, e um passante me ouviu e na mesma hora retrucou: "Quem leria isso em Esperanto?" Eu não entendi muito bem, pois, quem leria um livro em qualquer língua senão falantes daquela língua? Quem leria o Dom Casmurro em alemão ou Memórias Póstumas de Brás Cubas em japonês senão pessoas que lessem alemão ou japonês e não lessem português? Eu estava num humor gentil e expliquei para o cara que — pasme — existem pessoas no mundo que falam Esperanto e não falam Português e podem ter interesse naquele livro.
Este rodeio todo é para ilustrar um pouco o que é esperancear. É de alguma forma continuar a acreditar no melhor e tentar fazer com que ele aconteça. Não creio que o Esperanto um dia seja uma segunda língua universal, mas pensar sobre isso me faz esperancear que um dia surja (ou seja criada) uma língua auxiliar em campo de neutralidade que possibilite trocas mais horizontais sem a necessidade de passar por uma língua franca hegemônica e agente do imperialismo cultural. E que assim todas línguas naturais possam ser preservadas, mesmo e especialmente as com um pequeno número de falantes.
Mas voltando a falar de esperança, não de Esperanto: as catástrofes ambientais se acumulam pelo país — e pelo mundo — e a tendência é que sejam cada vez mais graves, frequentes e disseminadas. Reconhecer o fato não é perder as esperanças, mas entender o imperativo de se lidar com a emergência climática. Hoje, mais que nunca, é preciso esperancear, manter viva a companhia que nos afasta do inferno. Cuidemos uns dos outros.
No mais, sem mais,
Abraços ictiomercuriais,
Thiago Ambrósio Lage (@thamblage)
Gotas de mercúrio
Sábado agora, no dia 11/05/24, vai rolar um aulão de escrita para arrecadar fundos para ajudar na reconstrução do RS que enfrenta uma grave catástrofe. Eu e mais 15 escritores, reunidos e capitaneados por
da vamos falar sobre uma infinidade de assuntos. Clique aqui para mais informações.Quer comprar o seu exemplar de meu livro Romantífica? [explico um pouco sobre ele aqui] Basta acessar o site da editora.
Outros planetas, outros metais, outros signos, outros animais
Segue a recomendação de duas newsletters de autoras gaúchas falando sobre a catástrofe.
Mercúrio retrógrado
Uma vez numa discussão sobre Antropoceno, eu e mais alguns escritores sugerimos o nome Plutonoceno. Se o fim da Esperança nos leva ao reino de Plutão, vale a pena ler de novo:
Obrigado pela leitura!
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Você foi estudar Esperanto por causa da ficção científica? Nos Estados Unidos nos anos 1930-40 os fãs abraçaram a causa da nova língua. Descobri recentemente que os falantes dela foram perseguidos tanto pelos nazistas quanto pelos comunistas durante a Segunda Guerra.
esperancear sempre, afinal, a esperança é a última que morre!