É isso, agora eu falo de livros, mas do #meujeitinho, de leitor pra leitor. Pra pularmos cada vez mais muros juntos, como comentei na edição passada da newsletter: Gatekeeping, Jano e parkour literário.
ALERTA: evitarei spoilers apesar de não concordar muito com isso e nem saber exatamente o que pode ser considerado spoiler. Comentarei de forma mais geral sobre a forma, temas abordados nas obras e uma descrição mínima do cenário ou personagens. E fica também o alerta que mesmo que saiba todos os pontos da trama, são histórias em que o COMO os eventos acontecem é que faz o charme.
O título já entregou o tema da news e vamos direto ao ponto: Octavia Estelle Butler, escritora afroamericana nascida em junho de 47, falecida em fevereiro de 2006. No Brasil, é publicada pela Editora Morro Branco, com alguns títulos traduzidos por Heci Regina Candiane (Filhos de sangue e outras histórias, Despertar, Ritos de passagem, Imago, Semente originária e Elos da mente) e outros por Carolina Caires Coelho (Kindred: laços de sangue, A parábola do semeador, A parábola dos talentos).
Bora para a citação famosona?
“Comecei a escrever sobre poder, porque era algo que eu tinha muito pouco.”
Octavia E. Butler
Entre escritores é comum o ditado-conselho de “escreva sobre o que você conhece”. Nem vou cutucar o vespeiro que é falar sobre a validade desse ou qualquer outro conselho, mas só comento que algumas vezes se ouve o complemento “… ou sobre aquilo que quer conhecer”. Tendo isso em mente, buguei ao ler essa epígrafe: seria preciso ter poder para conhecê-lo? Ou só conhece bem o poder os que sofrem com sua falta?
Kindred é muito sobre isso. E tanto por ser a obra mais famosa da autora quanto por ser volume único, acaba sendo a resposta para a recorrente pergunta “quero ler Octavia, por onde começo?”. E Kindred é um livraço. Queria mandar logo o palavrão superlativo, mas nem sei se esta plataforma filtra/censura os textos. A indicação de Kindred quase sempre vem com uma sinopse enigmática (tem viagem no tempo, mas não é com máquina, nem poder, é diferente. Uma moça negra dos EUA volta pro tempo em que havia pessoas escravizadas lá. Mas tem que ler pra entender) e avisos de conteúdo/gatilho um pouco difusos (é pesado, é sofrido, eu lia correndo umas partes porque era angustiante, etc.). Kindred é isso tudo e muito mais. E com uma prosa habilidosa, impossível de largar. Fala um tanto sobre ancestralidade e seus processos dolorosos, e esperança. É um livro que te faz esquecer do celular.
Mas mesmo com todas as odes justíssimas ao Kindred, eu trago dois pontos:
Nem todo mundo precisa começar por Kindred;
Parar em Kindred e riscar Octavia do seu bingo é perder a chance de conhecer muito mais dela.
Destrincharei:
Ano passado eu pus na cabeça a meta de terminar de ler TUDO de Octavia Butler. Rapidinho a meta virou ler tudo que já foi traduzido. E mesmo assim o ano fechou antes que eu lesse Filhos de sangue e outras histórias e os dois primeiros volumes da série O Padronista (Semente originária e Elos da mente). A série, vou esperar sair inteira para imergir e a coletânea, confesso que até tentei ler rapidinho antes de escrever para vocês, mas desencanei: Octavia não merece isso. Falarei um pouquinho de cada obra/série e de como se encaixariam numa rota de leitura octaviabutleriana.
Sons da fala
Conto presente na Filhos de sangue e outras histórias, mas também disponível gratuitamente para leitura online no Projeto Cápsula (valeu, Morro Branco!). Para quem quer ter um primeiro contato com uma autora, quer coisa melhor que um conto gratuito?
Indico Sons da fala sem pestanejar por alguns motivos. O primeiro deles, a prosa. É uma prosa direta, precisa mas não é insossa. Essa é a prosa de Octavia, ela te pega pela mão e te joga dentro da história com descrições na medida. E com ritmo primoroso em que pensamentos, acontecimentos, diálogos e percepções se intercalam e revezam de forma quase imperceptível. A mesma característica está nos romances, então aqui já dá pra sentir se rola o match.
Os outros motivos estão no conteúdo. Amo histórias pós-apocalípticas. Ainda amo histórias de pandemias. E Sons da fala tem isso tudo apenas como ponto de partida. É uma história sobre escolhas difíceis, sobrevivência, comunicação, linguagem e o que nos faz humanos. Temas que reaparecem aqui e ali em outras obras, e são tratados aqui com uma profundidade surpreendente para um conto. E agora chega senão a indicação fica maior que o conto!
Para quem curtiu Sons da fala, indico fortemente A parábola do semeador e A parábola dos talentos.
Filhos de sangue / Bloodchild
Não li a coletânea Filhos de sangue e outros contos, mas li o conto que empresta o título a ela na sua edição em inglês, Bloodchild, disponível gratuitamente na Amazon. Não curto a ideia de indicar uma leitura em inglês, mas o comentário também serve para quem leu a coletânea: caso tenham curtido Filhos de sangue, leiam a trilogia Xenogênese.
Filhos de sangue aborda temas bem puxados e sensíveis como autonomia reprodutiva (nem sei se tem como falar dessa forma), abuso (novamente não sei se é a melhor palavra) e uma relação de aparente codependência entre humanos e uma espécie alienígena bizarra. O texto pode causar muito incômodo, não vou mentir, mas caso se sintam instigados, estejam prontos para uma história que vai revirar não só seu estômago, mas também sua cabeça.
Juro que quando ler a coletânea eu venho aqui falar sobre ela (ou não, posso esquecer a promessa assim que programar esta edição).
Duologia Semente da terra (A parábola do semeador, A parábola dos talentos)
Aqui temos um mundo apocalíptico assustadoramente próximo à nossa realidade. Todo mundo lascado nos EUA tentando viver do jeito que dá numa pegada que beira o Mad Max. E com a perspectiva da implantação de um governo teocrático freestyle por parte de um demagogo. E nesse mundo vive Olamina, a criadora de Semente da Terra, que se propõe a ser uma religião em torno da máxima “Deus é mudança”. Olamina escreve e propaga suas verdades enquanto sobrevive, e aqui vemos novamente o poder da palavra, seja em toda a esperança que Olamina busca e traz em meio à dor, seja dos discursos do projeto de ditador e seus seguidores. E no segundo volume algo se aprofunda nesse sentido, pois vemos em ação também o poder das narrativas.
Há outra forma de comunicação nesse mundo, uma forma literalmente visceral. Algumas pessoas sofrem de um tipo de hiperempatia e são chamadas de compartilhadoras. Elas sentem qualquer sensação que presenciem outra pessoa sentindo. Dor, ferimentos, prazer. E não é por acaso que escolhi a palavra “sofrem”: num mundo cruel é uma grande fraqueza não conseguir evitar se colocar no lugar do outro.
No meio disso tudo, uma das máximas de Olamina se tornou uma frase que ainda quero colocar numa galeria de citações: “Cuidem uns dos outros“. Guardadas as devidas proporções, é algo que vejo ecoado em nosso “Ninguém solta a mão de ninguém”.
Nessa duologia, as pessoas e relações são mostradas de forma crua, dolorosamente objetiva e real. Há sim muito sofrimento, crueldade, egoísmo e violência, mas também amor, solidariedade e lealdade sem limites. Se só percebemos as coisas por contraste, aqui Octavia conseguiu trazer extremos mas sem saturar os sentidos e nos deixando perceber todo o espectro.
Trilogia Xenogênese (Despertar, Ritos de passagem, Imago)
Xenogênse já começa com x de xodó, são meus livros favoritos de Octavia. Aqui, assim como em Filhos de sangue, temos o contato entre humanos e aliens numa relação ambígua de codependência: a humanidade estava à beira de se destruir na última guerra e foi salva pelos Oankali. Os Oankali estão se espalhando pelo universo e precisam dos humanos para dar seguimento a esse plano. Precisam sobretudo de genes humanos. E falou em genes/biotecnologia… falou direto ao meu coração.
Cada livro é um estágio dessa relação. Algo que permeia toda a obra é algo de colonial na forma como os Oankali lidam com os humanos. Para os alienígenas, toda forma de vida é sagrada e preciosa (eles colecionam DNA), mas consentimento e autonomia, não. Na prática, os humanos estão subjugados e não há outra opção senão colaborar, nem que seja temporariamente, na esperança de encontrar alguma alternativa. Aqui novamente o tema da sobrevivência surge, assim como o dualismo altruísmo/egoísmo, sendo o último chamado pelos aliens de “a contradição humana”, algo que os assusta e fascina.
Algo notável é que os livros foram lançados num período entre o desenvolvimento do primeiro transgênico em laboratório e a chegada do primeiro transgênico ao mercado. Há alguns outros conceitos de biologia e genética nos livros que são bem rigorosos, e um em especial que é meu favorito: o que possibilita aos Oankali manipular genomas com tanta destreza é uma organela presente em suas células. E claro que já fanfiquei que esta organela, assim como as mitocôndrias, surgiu como simbiontes e no fim das contas tanto os Oankali quanto a humanidade são recursos que ela utiliza para se propagar… mas ir além disso aqui talvez seria o tão temido spoiler, deixa quieto.
O Padronista (Semente originária, Elos da mente, …) e Filhos de sangue e outras histórias
Aqui insira o meme da Glória Pires, não sou capaz de opinar. Ainda.
Rotas Octaviabutlerianas
Resumindo e voltando pro concreto, eu acho que é ler Sons da fala, e se te agradar muito, ir para Semente da terra. Mas se curte aliens, se joga em Xenogênese. Mas independente do caminho, vai sempre se deparar com a contradição ou as contradições humanas, uma prosa deliciosa e envolvente e histórias que nos botam pra pensar e muito sobre racismo, misoginia, colonialismo, origens e sobre como de um jeito ou de outro podemos resistir, nem que seja apenas cuidando uns dos outros e sobrevivendo. E depois, antes ou durante a leitura, vem conversar comigo.
E fecho com a ousadia de discordar de Dona Octavia: ela sempre terá, tem e sempre teve poder. E muito. Como dizem os gringos, Rest in Power.
No mais, sem mais.
Abraços ictiomercuriais,
Thiago Ambrósio Lage (@thamblage)
PS.:
Está em pré-venda a coletânea Solarpunk: como aprendi a amar o futuro. Tem autores de vários países com contos que trazem visões otimistas do futuro, ou pelo menos boas esperanças. E este que vos escreve teve a honra de traduzir um dos contos! O livro sai no fim do mês e se eu fosse você, clicava no link nem que fosse para ver a capa que tá lindona!
Quer escrever? Vá fazer as oficinas da Ana Rüsche! Tem de ficção e não-ficção. Eu já fiz a de ficção e recomendo muito: a Ana tem um jeito bem objetivo e estruturado de conduzir a oficina e traz insights tanto para organizar/sistematizar a escrita quanto para a prosa e estrutura em si.
Meu conto Seis Estrelas saiu na revista Escambanáutica. É uma fantasia urbana ambientada em Belo Horizonte e protagonizada por uma motorista-fantasma de aplicativo com algumas pendências com sua viúva. A trilha sonora do conto poderia muito bem ser Encontros e Despedidas. A revista é gratuita e pode ser obtida em diversos formatos eletrônicos no site da editora.
Falando em links e sites, eu finalmente me cadastrei no programa de associados da Amazon, então sempre que comprarem alguma coisa com o link que eu compartilhar aqui, eu receberei uma comissão. Por hora estou longe de pensar em monetizar a newsletter, mas é um jeito de ganhar uma graninha pra pagar pelo menos os petiscos que como enquanto escrevo. Os livros citados aqui hoje foram os seguintes: Filhos de sangue e outras histórias, Despertar, Ritos de passagem, Imago, Semente originária, Elos da mente, Kindred: laços de sangue, A parábola do semeador, e A parábola dos talentos.
Hoje venho sem playlist, não estou escrevendo do meu computador e tá complicado de montar/fazer a capa/etc. E acho que nem tem música boa o suficiente no mundo para ser uma playlist de Octavia Butler. Pensando melhor, até tem, é Milton Nascimento. Então tomem a playlist dele de novo:
Obrigado pela leitura!
Se gostou da newsletter, pode querer conferir o que tenho produzido como escritor em meu site, e como podcaster no Incêndio na Escrivaninha, junto das escritoras Ana Rüsche e Vanessa Guedes. Ou pode querer apenas me seguir nas redes twitter, instagram e facebook e ficar por dentro de minhas bobagens e novidades.
Eu li Bloodchild e acho SENSACIONAL de um jeito perturbador. Acima de tudo gosto de jeito como ela fala nos comentários no final da edição da Amazon que é um conto DE AMOR, e isso deixa as pessoas uito horrorizadas. Amo. Romance a única coisa que li dela foi Fledgling, que é de vampiros - vampiros scifi, não vampiros fantasia - e renovou o amor a histórias de vampiros dentro de mim. É muito bom. A menina acorda com uns ferimentos horríveis e amnesiada, mas sabe que precisa de sangue para se recuperar, daí vai tentando descobrir o que ela é, e o que deixou ela tão machucada pra começo de conversa. É livro único, mas confesso que queria TANTO ler mais das aventuras dela depois dos eventos do livro... *suspiros pesados* Enfim, é maravilhoso.
ALERTA OCTAVIANE NO RECINTO! hehe eu amo que vc é apaixonado pela Octavia e me estimula a ler os livros dela (até hoje tenho as discussões sobre o primeiro livro da xenogênese bem guardados na memória, vc sempre com opiniões fortes e super relevantes). espero que mais gente tope com esse texto e vá atrás da obra dela. é magnífica.