Antropoceno, cthlhuceno, platationoceno, plutonoceno, *.ceno
Porque é importante dar nome às coisas. Ou não.
Um dia desses, ano passado, no primeiro encontro do Filamentos, rolou um papo sobre Antropoceno e a necessidade e desafio de se nomear o problema. (O Filamentos é um projeto tocado em parceria entre a incrível Ana Rüsche e a Editora Bandeirola. O projeto explora a ecologia e a literatura por meio de conversas, leituras, resenhas e um grupo de discussão, e você pode encontrar mais informações — e como apoiar — aqui).
Naquela reunião nos dividimos em grupos para propor nomes e tive a sorte de ser alocado com Carol Peters (insta, insta profissional, site), Lorena Ribeiro (insta, site) e Raphael Carmesim (insta, twitter). Entre nós, sugerimos o nome Plutonoceno como alternativa, considerando alguns fatores (que puxo da memória e já me desculpo caso tenha esquecido, acrescentado ou distorcido algum):
O prefixo pluto- significa riqueza, grana (daí a palavra plutocracia). A busca e o acúmulo da riqueza são parte do modo de vida contemporâneo uma das, senão a maior das, causas das alterações ambientais que caracterizam nossa época geológica;
Plutão (ou Hades, na Grécia) era o deus rei do mundo subterrâneo. E na sua jurisdição estavam não apenas os pós-vida mas também todas as riquezas ocultas no solo. Aqui o pensamento mais óbvio seriam as gemas e metais, mas o petróleo também está lá. E com um pouco de malabarismo argumentativo, o germinar das sementes, trazendo aí também a agricultura como um dos motores do Plutonoceno;
Para se determinar o início de uma época geológica é necessário escolher uma camada do solo que sirva como marco inicial. Partículas da atmosfera se depositam o tempo todo e se acumulam, formando camadas (estratos) que podem ser representativas do que estava presente no ar. Em 1952 houve um pico na concentração de Plutônio, um elemento radioativo, nestes estratos. Este ponto foi escolhido como o marco inicial do Antropoceno. Além da importância da delimitação da época, podemos também pensar na presença de Plutônio como uma consequência de uma civilização não apenas capaz de extrair, purificar e utilizar elementos radioativos como armas, mas também disposta a fazê-lo;
Como dito, Plutão-Hades era o deus rei dos mortos. Nossa época é uma época de morte em vários níveis. A ação humana causou a sexta extinção em massa em nosso planeta. Além disso, temos a vida morta, com os desertos verdes do agro;
Na astrologia, o planeta (planeta anão também é planeta) Plutão está simbolicamente relacionado com as grandes transformações e rupturas. O Antropoceno/Plutonoceno representa uma ruptura extrema com as condições planetárias anteriores, e traz de forma imperativa a necessidade que a humanidade desenvolva/implemente um novo modo de vida caso queira continuar viva. Ele literalmente traz "o fim da vida como conhecemos";
Plutão, o planeta, foi descoberto em 1930. Sua descoberta, assim como o uso da radioatividade e o antropoceno, também só foi possível a partir do desenvolvimento de tecnologias complexas.
A gente pensou em alguns critérios, e da mesma forma as pessoas que nomearam a nossa época geológica — ou o nosso problema — tiveram os seus ao pensar em antropoceno, platatioceno, cthulhuceno, capitaloceno, etc.
E isso fica tirando meu juízo: não seria mais fácil combinar apenas um nome? No dia a dia eu lido com alimentos e micro-organismos, e sempre agradeço à taxonomia que padroniza os nossos nomes científicos. Até numa mesma língua ou num mesmo país um vegetal pode ser conhecido por diversos nomes, mas nome científico é só um. E o nome não muda a natureza ou qualquer característica do que foi nomeado. É o que eu costumava achar.
Nomes têm poder. Seja em O Feiticeiro de Terramar com Ged e seus infinitos estudos, seja no conto de fadas de Rumpelstilzchen, seja no cômico inimigo do Super-Homem, o Mister Mxyzptlk. Nas três histórias, e em tantas outras, o conhecimento/uso do nome de algum ser ou fenômeno permite que de alguma forma você o manipule, crie, controle, destrua, etc. E quando se trata de um novo fenômeno, o desafio vai além de descobrir seu nome: é preciso criar um.
Creio que (fonte: minha imaginação) os nomes das coisas podem ter sido as primeiras palavras desenvolvidas por nossos ancestrais. Talvez com menos debate que o nome de nossa crise — não por não desejarem o debate, mas por ainda faltar vocabulário para ele. E o nome escolhido muitas vezes diz mais sobre quem o escolheu do que sobre o que o ostentará.
Imagine um país desconhecido. Ou melhor, um planeta, e que agora é conhecido. Ele tem o tamanho de Marte e a gravidade da Terra. um terço de sua superfície é coberta de água, ele tem imensas calotas polares e na zona equatorial as faixas de terra são cobertas por um tipo musgo verde. Há muito tectonismo e vulcões, e pouca chuva. Ele é o planeta mais próximo de uma estrela anã vermelha, fica a mil anos-luz da Terra. A sua órbita é instável e ele a corre no sentido inverso dos outros planetas que orbitam sua estrela. Ele será o primeiro planeta a ser colonizado pela espécie humana.
Dê um nome a este planeta.
Vai lá, vamos brincar um pouco com isso. Eu espero e volto depois da imagem.
Então… imagino que alguns nomes tenham surgido. Terra II, Nova Terra, NeoTerra. Cinto Verde. Bambolê. Marcha-ré. Bomba-relógio. Algum nome mitológico para seguir a regra de nosso sistema estelar. O nome de alguma pessoa querida. O código de nome-da-estrela-letras-e-números. Não tem como eu prever todos os nomes que vocês pensaram, mas uma coisa posso afirmar: este nome diz muito sobre cada um de vocês. Ele diz sobre o que mais repararam ou valorizaram em nosso planetinha distante. Se pensaram na vida que ele carrega. Em sua função no nosso impulso colonizatório. Em suas características físicas ou orbitais. Num nome puramente funcional ou poético. Ou pessoal.
Os nomes que escolhemos para as coisas acabam sendo relacionais, e isso gera situações em que duas pessoas podem dizer a mesma coisa e ao mesmo tempo coisas totalmente diferentes. Pegando um exemplo puntual:
O uso de defensivos agrícolas aumentou.
O uso de agrotóxicos aumentou.
As substâncias cujo uso aumentou são as mesmas, assim como sua função na agricultura e seu efeito deletério ao ambiente e à saúde humana. Mas numa das duas frases o foco está em sua função, na outra, em seus ônus.
Até nomes de países passam por mudanças para se adequar a novos tempos. O país Essuatíni abandonou o nome dado por seu colonizador. Pode ser que a Índia siga o mesmo caminho.
Sendo assim, cada nome traz em si suas limitações e pontos discutíveis. Quando se fala em antropoceno, se coloca na conta de toda a humanidade algo causado por apenas uma parcela dela. Povos originários não apenas não são agentes causadores do antropoceno, como podem trazer, em suas culturas e tecnologias, soluções para os problemas planetários. Quando se fala em cthulhuceno, se traz um enfoque mais utópico e não-antropocêntrico de formas de se lidar com a crise que podem nos fazer questionar o status quo mas não trazer uma descrição correta do momento atual ou soluções práticas. Falar de capitaloceno seria negar que sistemas produtivos não capitalistas tenham a sua parcela de responsabilidade na degradação do planeta. Cada nomenclatura proposta trará sua limitação.
Muito do debate em torno da nomenclatura é focado da responsabilidade/culpa pelo que vivemos. Países que se favoreceram de sistemas exploratórios e hoje vivem uma prosperidade (ainda) roubada de outras nações, devem contribuir mais nas soluções, e isso — ao contrário do nome — é indiscutível. Mas o nome, qualquer que seja, é essencial para que possamos nos comunicar, nos entender, planejar e implementar soluções para a crise/emergência climática (qual palavra você usa? Você ainda fala aquecimento global?).
Afinal de contas, temos apenas uma atmosfera e apenas um planeta, que é nossa casa independente de como o chamemos. Cuidemos dele.
No mais, sem mais,
Abraços ictiomercuriais,
Thiago Ambrósio Lage (@thamblage)
Drops
Meu conto Seis Estrelas, que saiu na revista Escambanáutica, está disponível na Amazon! No conto acompanhamos Míriam, uma motorista-fantasma de aplicativo que roda nas noites de Belo Horizonte.
Romantífica (vulgo meu livro mais recente) está no mundo! No livro trago contos que exploram a interface entre ficção científica, romance e relacionamentos (explico um pouco aqui). Quer comprar o seu exemplar? Basta me mandar um e-mail, mensagem, DM ou visitar meu site e seguir as instruções que mando um para você! Ou se preferir, pode comprar no site da editora.
Estarei no SESC de Sorocaba às 17:30 do dia 14/10/23 batendo um papo sobre Terror, Medo e Suspense com o Tito Prates e mediação da maravilhosa Fabiana Ferraz.
Outros planetas, outros metais, outros signos, outros animais
O texto é meu, mas a newsletter é outra: uma ficção-relâmpago minha foi publicada na edição mais recente da Pulpa, newsletter pertencente à Editora Escambanautica. E de uma forma misteriosa, ela tem algo a ver com o tema de hoje. Como a Terra mandaria uma mensagem aos humanos?
Confira e assine a Pulpa!
Mercúrio retrógrado
Aqui trago alguma edição antiga da newsletter que se relacione à edição atual. Talvez “nomes” seja um tema recorrente?
Obrigado pela leitura!
Se gostou da newsletter, pode querer conferir o que tenho produzido como escritor em meu site, e como podcaster no Incêndio na Escrivaninha, junto das escritoras Ana Rüsche e Vanessa Guedes. Ou pode querer apenas me seguir nas redes twitter, instagram e facebook e ficar por dentro de minhas bobagens e novidades.
Eu adoro quando tu fica encucado com alguma coisa e depois discorre aqui ♥️
Lembro de uma professora de Antropologia que eu tive falando que a Manuela Carneiro da Cunha, em alguma obra dela, fala que a no imaginário coletivo, os povos tradicionais são ultrapassados, são antigos, mas que não verdade, eles nunca foram atuais como agora. Isso porque se a gente não aprender urgentemente com eles como viver sem destruir o planeta, não haverá futuro. Uma trecho do seu texto me lembrou isso.