Quando escrevo, é sobre mim. Quando você lê, é sobre você
Todo texto é uma carta de suicídio
Uma vez, numa primeira consulta com uma psicóloga (qual delas? Nem sei. Assim como confundo exes, perfumes e óculos, depois de experimentar o terceiro, tudo é um borrão), travei logo ao entrar no consultório com várias opções de lugar para sentar: um divã, duas poltronas, um sofá. Na hora meu primeiro pensamento foi "nossa, agora só de eu escolher aqui ela já vai saber tudo sobre mim, e de forma precipitada e não sobre quem realmente sou. Ou pior, escolho uma poltrona e sem querer me sento na poltrona dela!". Com naturalidade, perguntei onde era pra eu me sentar, mas no fim da pergunta já me percebi entregue, se não pela escolha, pela recusa da escolha. Droga. Agora ela me considera uma pessoa que sempre vai pelo pensamento dos outros e sou incapaz de fazer minhas opções e tomar minhas atitudes, justo eu que sempre me achei tão independente e…
Não, cara.
Vai ver, só tinha várias opções porque o consultório era decorado assim. Vai ver, usam o consultório para terapia de grupo em outras ocasiões. Vai ver, a psicóloga apenas queria dar mais opções de acordo com o conforto e conveniência dos pacientes. Meu controle só existe até a minha escolha (ou recusa da escolha) do lugar de sentar. As consequências e interpretação disso vão além, me escapam. Mesmo com tentativas de influenciá-las, não consigo determiná-las, já que envolvem uma outra pessoa.
E quando são — espera-se — várias pessoas? Isto acontece com o texto. A gente fala e lê muito sobre a morte do autor, e um dos maiores gatilhos para esta edição da Mercúrio em Peixes é justo o texto da
sobre isso na .Até em um grupo de leitura coletiva do qual participo (um beijo, pessoal do Espalhe Fantasia!), brincamos demais com esta expressão, decretando seguidas vezes a morte do autor como uma maneira de nos apropriarmos das narrativas lidas. Até mesmo com o autor de corpo presente em nossos encontros virtuais a sua morte é decretada, o que sempre causa boas risadas.
Mas o clique surgido nesses dias foi diferente. Estou acostumado a falar da morte do autor e entendê-la do ponto de vista do leitor. Quero a obra pela obra, a opinião/intenção ao autor ali raramente me interessa. Mas como autor, tenho este desapego? Levar isso ao pé da letra é entender que a cada texto publicado, morro de novo. E morro novamente a cada leitura e releitura (se não atravessamos o mesmo rio duas vezes, nunca lemos o mesmo texto duas vezes, palavras fluem como as águas dos rios). Meu controle vai até a hora em que me sento — ou pergunto em qual cadeira me sentar. Depois disso, é interpretação dos outros.
Quando uma pessoa enxerga, a luz refletida pelos objetos entra em seus olhos, atravessa a córnea, o cristalino, e bate no fundo do olho, na retina, onde cones e bastonetes reagem à luz e enviam impulsos nervosos ao cérebro. Não tem como ver nada sem aquela imagem passar antes pelos nossos filtros. Pego a visão como exemplo, mas narinas, língua, pele e ouvidos também são canais sensoriais, e logo, filtros. Isso falando apenas de filtros fisiológicos, na formação da imagem em si, porque se considerar os outros filtros, imateriais, cognitivos… E teria como com o texto ser diferente?
O famoso experimento mental do gato de Schrödinger me ajuda a entender isso. O gato está fechado numa caixa na presença de um veneno com alguma probabilidade de contaminá-lo e matá-lo. Enquanto a caixa estiver fechada, é impossível afirmar se o gato está vivo ou morto: ele está vivo e morto num estado de sobreposição. Para se afirmar o estado vital do gato, é necessário abrir a caixa. E a partir do momento em que o observamos, ele senta em um dos sofás. Agora pense, se nossa observação influenciaria o estado de algo tão pesado e concreto como um gato imaginário, qual não seria o poder dela sobre algo tão sutil como um texto?
Ao ler, aquelas palavras adquirem uma configuração específica em nossa mente, mas ao invés de existirem antes num estado de sobreposição de dois estados como o pobre gato, elas existiam num campo de possibilidades virtualmente infinitas. O gato está vivo, morto, é laranja, rajado, senciente, astronauta, preto, sortudo. Talvez nem seja um gato, mas um rato ou cão fantasiados.
Escrever é fechar essa caixa misteriosa. Publicar é entregar ela na esperança que alguém a abra. Ou medo. Porque para o gato se revelar, preciso morrer. E às vezes morro e assombro o felino amorfo, apreensivo com quais formas irá tomar. Impotente, recorro a única maneira segura de controlar esta manifestação do animal imaginário e o mantenho comigo. Se não fecho ou entrego a caixa, ele não vira nada que eu não queira. Ele não vira nada.
Quando o gato atira o pau em você, não tem pra onde correr
Meus bloqueios na escrita vêm muito disso. O medo de acabar me expondo de uma forma fora de meu controle. Da escrita e da vida. Tem temas e questões que me atravessam e evito abordá-los aqui por puro medo de me expor, de ser pessoal demais, de ser mal interpretado. Medo de não ter o controle. De um ano pra cá, por exemplo, perdi quase 40 kg. Isso é uma reviravolta, em câmera lenta, mas é. Pensei em resgatar um antigo texto sobre gordofobia de um finado blog, fazer um contraste quase 15 anos depois. Mas travo: é pessoal demais. E alguma coisa não é? Se falo disso, falo de mim, mas se falo de sopas em estações espaciais, de minha autora favorita, de um jogo, de fofoca, também falo de mim. É sempre sobre mim. E se na história (apócrifa?) o "pai da psicanálise" afirma que um charuto às vezes é apenas um charuto, é preciso leveza para perceber que cadeiras, sofás e gatos são apenas o que são, assim como textos. E assim como textos, são sobre mim. Mas quando você lê, são sobre você.
O bagulho é tão doido, veja bem as voltas que o mundo dá: evito conscientemente falar sobre escrita, e tenho pavor do clichê que apelidei (meio maldosamente) de "a crônica da página em branco", existente também em sua versão ilustrada na "tirinha sobre não ter ideia pra fazer tirinha". Quem publica periodicamente — não é meu caso hoje, comecei a newsletter com o desejo de uma periodicidade quinzenal, sei que o ideal seria semanal, mas no frigir dos ovos, publico quando consigo — tem que entregar sempre. E uma hora o manancial seca. Aqui me entregar a este clichê não foi tanto a pressão do prazo, mas a necessidade de desfazer este bloqueio. Ela me impeliu a escrever e teorizar nesta minha "crônica da página em branco". E vamos de pagar língua mais uma vez, e tirar este texto da frente e produzir mais coisas pra morrer de novo, de novo, e de novo.
Na
, descreveu bem meu sentimento, e fechou com uma colocação interessante, a acontecência de um "algo mágico".Hoje o "algo mágico" aqui foi isso, escrever sobre meus incômodos, não ter medo de repetir um clichê e nem de morrer agora, em sua tela.
No mais, sem mais,
Abraços ictiomercuriais,
Thiago Ambrósio Lage (@thamblage)
Gotas de mercúrio
Quer comprar o seu exemplar de meu livro Romantífica? [explico um pouco sobre ele aqui] Basta acessar o site da editora.
Outros planetas, outros metais, outros signos, outros animais
O
da leu Romantífica e publicou aqui suas impressões. Confesso que mesmo no papel de autor morto, fiquei muito feliz com a leitura e palavras generosas dele.
Mercúrio retrógrado
Fiz um exercício de auto-exumação e observei a primeira edição desta newsletter. Preciso voltar a ela com mais regularidade, acho que como jeito de me levar menos a sério, ou de pelo menos lembrar de meus objetivos com mais nitidez.
Obrigado pela leitura!
Se gostou da newsletter, pode querer conferir o que tenho produzido como escritor em meu site, ou pode querer apenas me seguir nas redes instagram e facebook e ficar por dentro de minhas bobagens e novidades.
excelente.
uma coisa que me pega com "a crônica da página em branco" e seus similares nas outras artes é que toda profissão tem momentos de página em branco, mas apenas os ofícios ligados a arte tem espaço para expressar isso de forma aceitável.
pega muito mal para uma pessoa que trabalha em escritório dizer que não há serviço para mostrar hoje porque a inspiração/vontade/energia não veio. numa sociedade super positivista como a nossa no século 21, admitir que não se foi capaz de produzir é praticamente uma rebeldia.
que bom que somos artistas. :)
É isso. Que bom que vc trouxe seu texto pra nós 💌