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Os textos e os tempos

Uma visão caleidoscópico-orgânica

Thiago Ambrósio Lage
Oct 12, 2022
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Os textos e os tempos

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Topo de página da newsletter. Em um fundo roxo está escrito Mercúrio em Peixes numa tipografia com traços ao redor das letras e em azul-claro e ciano-escuro para simular metal. Abaixo de Mercúrio em Peixes há o subtítulo "reflexos num espelho líquido" em letras azul-claras mas em tipografia mais simples e tamanho menor.

Os cinco tempos do texto

Pensar no texto e o tempo para mim é pensar nos textos e nos tempos. E nos tempos de cada texto. Um texto tem um ciclo de vida que marco em cinco pontos, conforme o seguinte diagrama:

Fluxograma de cinco etapas, feito em formas azul-turquesa. Cada retângulo termina numa ponta como se fosse uma seta apontando para o retângulo posterior. Eles estão com as letras A, B, C, D e E dentro de cada um, formando esta sequência. A etapa C se abre como um leque e se divide em três, seguindo cada um dos três caminhos para uma etapa D diferente, e cada etapa D para sua etapa E.
Os cinco tempos do texto, com o detalhe que após a publicação eles correm em paralelo
  • A - a pré-escrita

  • B - a escrita

  • C - a publicação

  • D - a leitura

  • E - a pós-leitura

Bom, eu já disse que minha formação é em exatas, né? E com um pé nas biológicas. Mas primeiro pensemos num texto. Antes que a primeira palavra seja escrita, ele existe num tempo anterior na mente de quem escreve. Seja como ideia, inspiração, fragmento, sussurro da musa. É ali que ele se desenvolve e toma forma, nem que seja a forma de uma semente que só brotará no papel.

Cada um tem seu método, alguns ruminam o texto por dias, meses, outros preferem não ir muito além da primeira fagulha e deixar que tudo tome forma fora do corpo. Aqui cabem outras analogias, destilação e fermentação, escritores vivíparos e ovíparos, mas são papos para outra hora.

No papel ou na tela, é quando tudo que é potencial se cristaliza. Para alguns mais rápido, para outros mais devagar, mas para todos algo que existia em um espaço mental em que as dimensões deixam de fazer sentido passa a existir de forma linear, sequencial. Ideias coexistem, imagens podem ser postas lado a lado ou sobrepostas, mas o texto (salvo algumas exceções, eu creio) está preso num espaço bidimensional, seja da esquerda para a direita, da direita pra esquerda, indo e voltando, de cima para baixo, … palavra a após palavra, frase após frase. Lembrei de uma exceção: a língua heptápode (mas aí é lendo o conto "A história da sua vida" ou vendo o filme "A chegada" para entender. Inclusive eu e Ana Rüsche batemos um papo com Athur Marchetto do 30:MIN sobre essas obras).

O próximo tempo é o que existe entre a escrita e a leitura. Aqui o texto ainda é massa, sua sequência é maleável. Não há elementos que não possam ser retirados ou acrescentados. Existe a máxima do "editar é escrever", mas ouso discordar. A matéria-prima é diferente. Escrever é misturar a argila e a água para que tenham a consistência adequada. Editar é modelar o vaso. E depois, expô-lo ao calor da publicação em que sua forma se torna fixa. A palavra publicada não volta, a internet nunca esquece (será?). A ansiedade vai ao máximo. Mas uma hora, o texto vai. Lembro de uma professora que disse que não existe texto pronto, existe texto entregue. Mas se faço outra versão de um texto publicado, a versão anterior ainda existe. Faço um novo vaso parecido, mas jamais o mesmo.

E ali o texto-vaso fica num tempo que passa a correr em várias linhas até o momento das leituras. Aqui ele se ramifica com cada caminho desaguando em um leitor diferente. Alguns o lerão no lançamento, outros, centenas ou milhares de anos depois. Como dizia a propaganda, quem lê, viaja. No tempo. A cada vez que o texto é decifrado, ele se reativa na mente do leitor. O vaso é usado, quebrado, riscado, decora uma sala, serve de presente. Todo o controle da terceira etapa é perdido. Neste tempo, leitor e autor se conectam.

Após a leitura o texto ainda existe, e o que nasceu no espaço mental do autor agora habita o espaço mental do leitor. Pode ser que vire uma memória boa ou ruim, revisitada com frequência. Pode ser que vire uma memória dormente, a ser reativada por gatilhos. Pode ser que vá direto pro subconsciente onde se crê esquecido. Pode ser até que alguma parte dele siga adiante… parte de algum texto que o leitor, agora autor, produza. Essa é a lei da biogênese de Pasteur: "toda vida vem da vida".

Textos são organismos vivos

É isso: os textos vivem. Só a vida gera vida, mas tem mais biologia ali (já disse que tenho um pé nas biológicas?). Tem hereditariedade, obviamente. A gente chama de inspiração, influência, referência. Não confunfir com plágio, a clonagem é um tema controverso.

Pensando nos cinco tempos, os vejo também como peneiras, pressões seletivas da teoria da evolução. É a sobrevivência do mais apto. Ilustro isso no seguinte diagrama:

Fluxograma de cinco etapas, feito em formas azul-turquesa. Cada retângulo termina numa ponta como se fosse uma seta apontando para o retângulo posterior. Eles estão com as letras A, B, C, D e E dentro de cada um, formando esta sequência. A etapa C se abre como um leque e se divide em três, seguindo cada um dos três caminhos para uma etapa D diferente, e cada etapa D para sua etapa E. Agora todas as etapas intermediárias têm linhas tracejadas à sua direita como se fossem peneiras, e dentro de cada uma há pequenos símbolos coloridos (círculos, quadrados, triângulos e estrelas vinho, azul-marinho, amarelo claro e amarelo escuro). A cada etapa, o número destes símbolos diminui para ilustrar que nem todos passam pelas peneiras.
Os tempos do texto como peneiras ou filtros

As ideias passam por constante triagem, julgamento e recombinação. Muito da criatividade vem da força dos números, de um brainstorming privado em que para cada ideia contemplada, outras 20 ou mais foram para a lixeira ou para a reciclagem. Como na natureza, o segredo para vencer as peneiras é a diversidade, quanto mais, melhor.

Ao digitar ou escrever, palavras são testadas, descartadas. Textos são abandonados ou colocados em pausa. Quanto mais energia se investe, mais é preciso fé da aptidão do sobrevivente. Quanto mais energia se investe, mais apto ele estará.

Na pós-escrita, um azarão das peneiras anteriores pode ter seu momento de brilhar. Uma boa edição faz maravilhas, mas não milagres, e ainda assim há casos irrecuperáveis. Nestes o processo seria tão profundo que seria o mesmo que voltar uma etapa.

Na leitura, bem. A vida é curta, e a nossa atenção também. Abandonar uma obra ou até um texto curto deixou de ser crime faz tempo. E não tem ideia, escrita ou pós-escrita que dê nenhuma garantia de sobrevivência ao texto aqui: às vezes a aptidão é muito mais questão de dar um match com o que o leitor queria ou precisava no momento.

Após a leitura, voltamos ao ecossistema mental. Tudo pode acontecer, inclusive nada. Mas os textos que realmente tocaram, com certeza estarão trovejando nas tempestades de ideias futuras.

O tempo é uma ilusão, ou os cinco textos do tempo, ou textos são criaturas orgânicas multidimensionais

Um dos maiores dramas de estudar ciência é que vivemos caindo em uma pegadinha depois da outra. Sempre tem um professor que vai desbancar as "verdades supremas" dos professores dos níveis anteriores. Agora pelo menos terão esta experiência numa única newsletter: a existência do texto por sí só desafia a natureza linear do tempo.

Isso pode ser percebido com nitidez nos seguintes diagramas, sendo o segundo uma versão mais organizada do primeiro. Vale notar que agora cada etapa tem a forma circular e é permeável em todas as direções, apesar de ainda agir como filtro.

Fluxograma de cinco etapas, feito em círculos azul-turquesa. Eles estão com as letras A, B, C, D e E, são circulados por linhas tracejadas e já setas acima e abaixo da fileira de círculos conectando a todos nos dois sentidos. A imagem com tantas setas é confusa e difícil de visualizar.
Os cinco tempos do texto conectados entre si mas organizados de forma linear
Cinco círculos azul-turquesa dispostos na forma de pentágono ou estrela de cinco pontas. Eles estão com as letras A, B, C, D e E, são circulados por linhas tracejadas e há setas de dois sentidos conectando a todos formando um pentágono com uma estrela de 5 pontas inscrita nele.
Uma versão mais organizada da imagem anterior com os tempos formando um pentágono. Seria esta a melhor forma de invocar um texto?

Ok, a nitidez foi ironia. Mas o fato é: o texto existe em diversas formas nos cinco tempos citados. A cada momento, todas as suas versões e formas anteriores são ativadas em maior ou menor grau. Da mesma forma que um elefante carrega mitocôndrias semelhantes a de seus ancestrais desde os micro-organismos, a primeira versão de um texto traz as suas ideias, a edição traz as versões anteriores e as ideias, na leitura há a versão editada, a primeira versão e as ideias, na lembrança há a leitura, a edição, a primeira versão e as ideias. É como a música da velha a fiar, mas com uma diferença, a cada etapa desta viagem ao passado não se percebe o que o texto era. Assim como a mitocôndria de um elefante hoje tem regiões estáveis e outras fruto de sucessivas mutações, o texto a qualquer momento é essa mistura. E sempre "contaminada" com o que quem reativa o texto traz. É como se a mitocôndria do elefante sofresse uma mutação a cada vez que fosse observada de forma a se aproximar de seu observador.

De forma semelhante, como a árvore é contida na semente, a cada etapa o texto traz em si suas formas futuras. Aqui a nossa percepção é limitada, e estas características estão não só dentro do texto, mas também ao redor dele. Esta presença futura muitas vezes é o que compõe as peneiras pelas quais o texto passa. Sempre que um público-alvo ou leitor ideal é considerado, uma possibilidade futura molda o presente (que logo será passado). O mesmo serve para quando se pensa em interpretações. Colegas escritores hoje se paralisam com isso, aterrorizados com a impossibilidade do controle absoluto da forma como suas palavras serão interpretadas. O que começa como uma responsabilidade com o que se escreve pode atingir níveis desproporcionais, como ser tolhido pelo gosto de leitores hipotéticos que ainda nem nasceram.

Peguei algumas conexões temporais como exemplo, mas o fato é que todas elas acontecem o tempo todo e de forma dinâmica. Isso faz com que o texto na prática seja um tipo de criatura multidimensional, que existe de alguma forma além da quarta dimensão, o tempo, e conecta a todos os tempos. É algo difícil de explicar em poucas palavras numa newsletter apressada (e o que não é apressado hoje?), mas o conceito de uma, duas, três e quatro dimensões é muito bem explorado no Planolândia de Edwin Abbot Abbot, que também foi adaptado para animação.

Nesta imagem percebo o texto em meio a outros textos em formas dinâmicas que fluem o tempo todo, com seus cinco tempos coexistindo e influenciando uns aos outros. E neste processo os textos e tempos podem chegar inclusive a se sobrepor em alguns momento-lugares.

Imagem caótica com várias formas semitransparentes sobrepostas. Há formas ameboides amarelo-escuras com formas ameboides menores azul turquesa dentro delas. As formas azul turquesa têm os rótulos A, B, C, D ou E, e também têm forma irregular. Todas as formas são margeadas com linhas tracejadas. Uma forma ameboide pode ser visualizada de forma completa, com as 5 formas azul turquesa dentro dela. Outras formas estão nos cantos e bordas da imagem e apenas uma parte delas pode ser visualizada.
Textos como células e seus tempos como organelas. Ou todos como flutuações no espaçotempo.

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Pensando dessa forma, o papel do autor pode ser muito pequeno, pode ser o trabalho de apenas registrar algo maior que ele percebe pelo buraco da fechadura em sua mente. O trabalho do autor pode ser muito grande, de traduzir para o mundo de letras bidimensionais uma entidade de cinco (ou mais) dimensões. Quanto mais penso nisso, mais entendo os escritores para os quais faltam palavras. Seria a relação do autor com o texto um horror cósmico pessoal?

Textodiversidade

A força da vida é a diversidade. E creio que a força dos textos também. As peneiras e pressões evolutivas estão aí o tempo todo, e a aposta mais certeira para que tenhamos as melhores ideias e histórias é produzi-las, lê-las, divulgá-las. É assim que se vence o tempo. Que nossos textos sejam mitocôndrias.

Este texto foi inspirado pelo tema "O Texto & o Tempo", tema de um evento para quem lê e escreve newsletters que acontecerá online nos dias 5 e 6 de novembro. Ocorrerão mesas e oficinas com um grande time de autores de newsletters, e as inscrições custam 48 reais e podem ser feitas pelo sympla. E lembrando que haverá bolsas para pessoas com deficiência, jovens de baixa renda e pessoas não-brancas. Para pedir um desses ingressos, entre em contato com otextoeotempo@gmail.com. Fica o convite para que participem conosco!

No mais, sem mais,

Abraços ictiomercuriais,

Thiago Ambrósio Lage (@thamblage) 

separador com o logo da newsletter (as letras Hg estilizadas) repetido 3 vezes, a primeira em vermelho-escuro, a segunda em amarelo-escuro e a terceria em ciano-escuro. Hg é o símbolo do elemento mercúrio, e no desenho estilizado ele parece ser formado por desenhos de peixes.

PS.:

  • Guarás é uma história linda e sensível em quadrinhos, com roteiro foda do Felipe Castilho e a arte onírica de Monaramis. Eu já li uma parte dela no fianciamento recorrente do Castilho e confesso que chorei de molhar a camisa. Mas um choro meio de abraço. Está rolando um financiamento coletivo para que a história seja publicada ampliada, com mais personagens, arte e tudo que há de bom em formato físico. Eu estou muito empolgado com este projeto e acho que você também vai curtir. Dê uma passadinha lá no catarse para espiar e apoiar!

  • Na minha edição sobre vinil e fatiar o tempo eu comentei sobre o método pomodoro, e vendo o comentário de Ana Rüsche eu pensei: porque não fazer playlists com a duração de uns 25 minutos? O plano é fazer pelo menos uma por edição da Mercúrio em Peixes, e hoje tem uma: Tempo. Espero que curtam!

separador com o logo da newsletter (as letras Hg estilizadas) repetido 3 vezes, a primeira em vermelho-escuro, a segunda em amarelo-escuro e a terceria em ciano-escuro. Hg é o símbolo do elemento mercúrio, e no desenho estilizado ele parece ser formado por desenhos de peixes.

Obrigado pela leitura!
Se gostou da newsletter, pode querer conferir o que tenho produzido como escritor em meu site, e como podcaster no Incêndio na Escrivaninha, junto das escritoras Ana Rüsche e Vanessa Guedes. E leiam as obras da Plutão Livros! Ou pode querer apenas me seguir nas redes twitter, instagram e facebook e ficar por dentro de minhas bobagens e novidades.

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Victória Haydée
Writes resenhas que ninguém pediu
Oct 24, 2022Liked by Thiago Ambrósio Lage

um texto bem escrito é um texto bem escrito, né, meuzamigos.

fantástico!

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1 reply by Thiago Ambrósio Lage
Vanessa Guedes
Writes Segredos em órbita
Oct 16, 2022Liked by Thiago Ambrósio Lage

adorei a super exploração do tema e me identifiquei com muita coisa hehe obrigada, Thiago!!

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1 reply by Thiago Ambrósio Lage
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