Os cinco tempos do texto
Pensar no texto e o tempo para mim é pensar nos textos e nos tempos. E nos tempos de cada texto. Um texto tem um ciclo de vida que marco em cinco pontos, conforme o seguinte diagrama:
A - a pré-escrita
B - a escrita
C - a publicação
D - a leitura
E - a pós-leitura
Bom, eu já disse que minha formação é em exatas, né? E com um pé nas biológicas. Mas primeiro pensemos num texto. Antes que a primeira palavra seja escrita, ele existe num tempo anterior na mente de quem escreve. Seja como ideia, inspiração, fragmento, sussurro da musa. É ali que ele se desenvolve e toma forma, nem que seja a forma de uma semente que só brotará no papel.
Cada um tem seu método, alguns ruminam o texto por dias, meses, outros preferem não ir muito além da primeira fagulha e deixar que tudo tome forma fora do corpo. Aqui cabem outras analogias, destilação e fermentação, escritores vivíparos e ovíparos, mas são papos para outra hora.
No papel ou na tela, é quando tudo que é potencial se cristaliza. Para alguns mais rápido, para outros mais devagar, mas para todos algo que existia em um espaço mental em que as dimensões deixam de fazer sentido passa a existir de forma linear, sequencial. Ideias coexistem, imagens podem ser postas lado a lado ou sobrepostas, mas o texto (salvo algumas exceções, eu creio) está preso num espaço bidimensional, seja da esquerda para a direita, da direita pra esquerda, indo e voltando, de cima para baixo, … palavra a após palavra, frase após frase. Lembrei de uma exceção: a língua heptápode (mas aí é lendo o conto "A história da sua vida" ou vendo o filme "A chegada" para entender. Inclusive eu e Ana Rüsche batemos um papo com Athur Marchetto do 30:MIN sobre essas obras).
O próximo tempo é o que existe entre a escrita e a leitura. Aqui o texto ainda é massa, sua sequência é maleável. Não há elementos que não possam ser retirados ou acrescentados. Existe a máxima do "editar é escrever", mas ouso discordar. A matéria-prima é diferente. Escrever é misturar a argila e a água para que tenham a consistência adequada. Editar é modelar o vaso. E depois, expô-lo ao calor da publicação em que sua forma se torna fixa. A palavra publicada não volta, a internet nunca esquece (será?). A ansiedade vai ao máximo. Mas uma hora, o texto vai. Lembro de uma professora que disse que não existe texto pronto, existe texto entregue. Mas se faço outra versão de um texto publicado, a versão anterior ainda existe. Faço um novo vaso parecido, mas jamais o mesmo.
E ali o texto-vaso fica num tempo que passa a correr em várias linhas até o momento das leituras. Aqui ele se ramifica com cada caminho desaguando em um leitor diferente. Alguns o lerão no lançamento, outros, centenas ou milhares de anos depois. Como dizia a propaganda, quem lê, viaja. No tempo. A cada vez que o texto é decifrado, ele se reativa na mente do leitor. O vaso é usado, quebrado, riscado, decora uma sala, serve de presente. Todo o controle da terceira etapa é perdido. Neste tempo, leitor e autor se conectam.
Após a leitura o texto ainda existe, e o que nasceu no espaço mental do autor agora habita o espaço mental do leitor. Pode ser que vire uma memória boa ou ruim, revisitada com frequência. Pode ser que vire uma memória dormente, a ser reativada por gatilhos. Pode ser que vá direto pro subconsciente onde se crê esquecido. Pode ser até que alguma parte dele siga adiante… parte de algum texto que o leitor, agora autor, produza. Essa é a lei da biogênese de Pasteur: "toda vida vem da vida".
Textos são organismos vivos
É isso: os textos vivem. Só a vida gera vida, mas tem mais biologia ali (já disse que tenho um pé nas biológicas?). Tem hereditariedade, obviamente. A gente chama de inspiração, influência, referência. Não confunfir com plágio, a clonagem é um tema controverso.
Pensando nos cinco tempos, os vejo também como peneiras, pressões seletivas da teoria da evolução. É a sobrevivência do mais apto. Ilustro isso no seguinte diagrama:
As ideias passam por constante triagem, julgamento e recombinação. Muito da criatividade vem da força dos números, de um brainstorming privado em que para cada ideia contemplada, outras 20 ou mais foram para a lixeira ou para a reciclagem. Como na natureza, o segredo para vencer as peneiras é a diversidade, quanto mais, melhor.
Ao digitar ou escrever, palavras são testadas, descartadas. Textos são abandonados ou colocados em pausa. Quanto mais energia se investe, mais é preciso fé da aptidão do sobrevivente. Quanto mais energia se investe, mais apto ele estará.
Na pós-escrita, um azarão das peneiras anteriores pode ter seu momento de brilhar. Uma boa edição faz maravilhas, mas não milagres, e ainda assim há casos irrecuperáveis. Nestes o processo seria tão profundo que seria o mesmo que voltar uma etapa.
Na leitura, bem. A vida é curta, e a nossa atenção também. Abandonar uma obra ou até um texto curto deixou de ser crime faz tempo. E não tem ideia, escrita ou pós-escrita que dê nenhuma garantia de sobrevivência ao texto aqui: às vezes a aptidão é muito mais questão de dar um match com o que o leitor queria ou precisava no momento.
Após a leitura, voltamos ao ecossistema mental. Tudo pode acontecer, inclusive nada. Mas os textos que realmente tocaram, com certeza estarão trovejando nas tempestades de ideias futuras.
O tempo é uma ilusão, ou os cinco textos do tempo, ou textos são criaturas orgânicas multidimensionais
Um dos maiores dramas de estudar ciência é que vivemos caindo em uma pegadinha depois da outra. Sempre tem um professor que vai desbancar as "verdades supremas" dos professores dos níveis anteriores. Agora pelo menos terão esta experiência numa única newsletter: a existência do texto por sí só desafia a natureza linear do tempo.
Isso pode ser percebido com nitidez nos seguintes diagramas, sendo o segundo uma versão mais organizada do primeiro. Vale notar que agora cada etapa tem a forma circular e é permeável em todas as direções, apesar de ainda agir como filtro.
Ok, a nitidez foi ironia. Mas o fato é: o texto existe em diversas formas nos cinco tempos citados. A cada momento, todas as suas versões e formas anteriores são ativadas em maior ou menor grau. Da mesma forma que um elefante carrega mitocôndrias semelhantes a de seus ancestrais desde os micro-organismos, a primeira versão de um texto traz as suas ideias, a edição traz as versões anteriores e as ideias, na leitura há a versão editada, a primeira versão e as ideias, na lembrança há a leitura, a edição, a primeira versão e as ideias. É como a música da velha a fiar, mas com uma diferença, a cada etapa desta viagem ao passado não se percebe o que o texto era. Assim como a mitocôndria de um elefante hoje tem regiões estáveis e outras fruto de sucessivas mutações, o texto a qualquer momento é essa mistura. E sempre "contaminada" com o que quem reativa o texto traz. É como se a mitocôndria do elefante sofresse uma mutação a cada vez que fosse observada de forma a se aproximar de seu observador.
De forma semelhante, como a árvore é contida na semente, a cada etapa o texto traz em si suas formas futuras. Aqui a nossa percepção é limitada, e estas características estão não só dentro do texto, mas também ao redor dele. Esta presença futura muitas vezes é o que compõe as peneiras pelas quais o texto passa. Sempre que um público-alvo ou leitor ideal é considerado, uma possibilidade futura molda o presente (que logo será passado). O mesmo serve para quando se pensa em interpretações. Colegas escritores hoje se paralisam com isso, aterrorizados com a impossibilidade do controle absoluto da forma como suas palavras serão interpretadas. O que começa como uma responsabilidade com o que se escreve pode atingir níveis desproporcionais, como ser tolhido pelo gosto de leitores hipotéticos que ainda nem nasceram.
Peguei algumas conexões temporais como exemplo, mas o fato é que todas elas acontecem o tempo todo e de forma dinâmica. Isso faz com que o texto na prática seja um tipo de criatura multidimensional, que existe de alguma forma além da quarta dimensão, o tempo, e conecta a todos os tempos. É algo difícil de explicar em poucas palavras numa newsletter apressada (e o que não é apressado hoje?), mas o conceito de uma, duas, três e quatro dimensões é muito bem explorado no Planolândia de Edwin Abbot Abbot, que também foi adaptado para animação.
Nesta imagem percebo o texto em meio a outros textos em formas dinâmicas que fluem o tempo todo, com seus cinco tempos coexistindo e influenciando uns aos outros. E neste processo os textos e tempos podem chegar inclusive a se sobrepor em alguns momento-lugares.
Pensando dessa forma, o papel do autor pode ser muito pequeno, pode ser o trabalho de apenas registrar algo maior que ele percebe pelo buraco da fechadura em sua mente. O trabalho do autor pode ser muito grande, de traduzir para o mundo de letras bidimensionais uma entidade de cinco (ou mais) dimensões. Quanto mais penso nisso, mais entendo os escritores para os quais faltam palavras. Seria a relação do autor com o texto um horror cósmico pessoal?
Textodiversidade
A força da vida é a diversidade. E creio que a força dos textos também. As peneiras e pressões evolutivas estão aí o tempo todo, e a aposta mais certeira para que tenhamos as melhores ideias e histórias é produzi-las, lê-las, divulgá-las. É assim que se vence o tempo. Que nossos textos sejam mitocôndrias.
Este texto foi inspirado pelo tema "O Texto & o Tempo", tema de um evento para quem lê e escreve newsletters que acontecerá online nos dias 5 e 6 de novembro. Ocorrerão mesas e oficinas com um grande time de autores de newsletters, e as inscrições custam 48 reais e podem ser feitas pelo sympla. E lembrando que haverá bolsas para pessoas com deficiência, jovens de baixa renda e pessoas não-brancas. Para pedir um desses ingressos, entre em contato com otextoeotempo@gmail.com. Fica o convite para que participem conosco!
No mais, sem mais,
Abraços ictiomercuriais,
Thiago Ambrósio Lage (@thamblage)
PS.:
Guarás é uma história linda e sensível em quadrinhos, com roteiro foda do Felipe Castilho e a arte onírica de Monaramis. Eu já li uma parte dela no fianciamento recorrente do Castilho e confesso que chorei de molhar a camisa. Mas um choro meio de abraço. Está rolando um financiamento coletivo para que a história seja publicada ampliada, com mais personagens, arte e tudo que há de bom em formato físico. Eu estou muito empolgado com este projeto e acho que você também vai curtir. Dê uma passadinha lá no catarse para espiar e apoiar!
Na minha edição sobre vinil e fatiar o tempo eu comentei sobre o método pomodoro, e vendo o comentário de Ana Rüsche eu pensei: porque não fazer playlists com a duração de uns 25 minutos? O plano é fazer pelo menos uma por edição da Mercúrio em Peixes, e hoje tem uma: Tempo. Espero que curtam!
Obrigado pela leitura!
Se gostou da newsletter, pode querer conferir o que tenho produzido como escritor em meu site, e como podcaster no Incêndio na Escrivaninha, junto das escritoras Ana Rüsche e Vanessa Guedes. E leiam as obras da Plutão Livros! Ou pode querer apenas me seguir nas redes twitter, instagram e facebook e ficar por dentro de minhas bobagens e novidades.
um texto bem escrito é um texto bem escrito, né, meuzamigos.
fantástico!
adorei a super exploração do tema e me identifiquei com muita coisa hehe obrigada, Thiago!!