O tempo comprimido e dilatado
O futuro é hoje, o passado é longínquo. A gente faz nosso próprio efeito Doppler.
Você se lembra do que é o efeito Doppler? Resumindo bem: quando uma ambulância se aproxima com a sirene ligada, o som dela parece mais agudo do que realmente é. Quando se afasta, ele parece mais grave. Em outras palavras, quando ela se aproxima as ondas sonoras ficam mais comprimidas, logo com a frequência maior e mais agudas, e quando se afasta, o oposto acontece. (você pode clicar aqui para refrescar a memória, ou espiar o video abaixo — habilitando as legendas caso necessário)
À medida que nos deslocamos para a frente no tempo, percebo que o mesmo acontece conosco.
Passado
O passado é expandido. Hoje já entendemos "antigamente" como há cinco anos. Quando comecei a dar aulas, lá pelo meio dos anos zero, um aluno comentou comigo que iriam filmar o remake de um filme antigaço. O Drácula de Bram Stoker. Um filme que eu tinha visto no cinema, a contragosto porque não curtia horror, sentado na escada entre as fileiras do finado Cine Jacques no centro de Belo Horizonte. Num cinema (grande) de rua. Em 1992. Antigaço.
Pra mim o tempo dos filmes é outro. Antigaço mesmo é filme mudo. Antigo, em preto e branco. Velho é dos anos 70-80 pra trás. Em 80 eu nasci e tudo passou a ser (meu) contemporâneo, aí começo a falar por décadas. Uma comédia dos anos 80, uma ficção científica dos anos 90. Mas sinto que logo serei absorvido pelo Zeitgeist e reconhecerei os filmes de minha infância e adolescência como antigos, talvez assim me reconhecendo como antigo também.
E de onde vem essa pulsão de nos distanciarmos tanto do passado? Falar de passado e futuro pra mim é falar de dois lados da moeda da (falta de) saúde mental: depressão e ansiedade. Para mim, a depressão tem muito de melancolia e memória. Se distanciar do passado é se distanciar de memórias e experiências ruins. Se me distancio de um filme de 92, minha adolescência triste também fica longe, antigaça, esmaecida.
A pandemia bugou nosso senso de passado. Para alguns, ainda estamos em 2020. Ao mesmo tempo, parece que muitos anos se passaram. Enquanto se discute quando teremos distanciamento histórico o suficiente para abordar a pandemia na arte, já há obras que a abordam com maestria. De alguma forma, ela é passado distante mas ainda presente. O passado de Schrödinger.
Futuro
Já li em algum lugar que a ansiedade é a tensão entre o futuro e o presente. E creio que com esta sensação, algumas pessoas resolveram mitigar a angústia trazendo o futuro para o presente logo. Numa tentativa de "arrancar o esparadrapo de uma vez", vamos vivendo os amanhãs ainda hoje.
A reação clássica a isso é quando encontramos panetones à venda em outubro e fomos comentar nas redes sociais e nos surpreender que "nossa, já é quase Natal?". Não, ainda faltariam mais de dois meses. Com uma presença cada vez mais forte da cultura do Halloween no Brasil, os memes de trocar a decoração do dia das bruxas pela natalina na virada de 31/10 para 01/11 abundaram. Dezembro é muito cheio, não vamos dar conta de tudo, vamos marcar a confraternização logo para novembro. A retrospectiva de suas músicas mais ouvidas no ano saiu agora logo no começo de dezembro, deixando de fora um mês inteiro. Mas se soltar no fim do ano mesmo, ninguém vai ver, é dezembro.
Na economia da atenção, não basta ser mais brilhante, barulhento, ter o melhor bait: quem chegar primeiro, leva. Na Black Friday, outra importação que teimamos em fazer dos EUA, o fim de semana de promoções no fim de novembro já virou novembro inteiro. Aqui a luta é pela grana mesmo: se gastei tudo nas promoções no começo de mês, e quando chegou a Black Friday mesmo, já não tinha mais nada. Só o crédito.
No trabalho, tenho visto acontecer com alguma frequência cobranças antes do fim de prazos. Nos trabalhos, para ser preciso.
Hoje tudo é (ou precisa ser) realmente mais rápido ou só estamos tentando diminuir esta ansiedade difusa e massacrante adiantando o máximo o futuro? Viver o futuro logo hoje é um jeito de domesticá-lo, de me manter no controle. É como ler o fim do livro e já saber que tudo vai ficar bem. Só que nosso livro do tempo é de escrita contínua e dinâmica.
Novamente falando da pandemia, vivenciamos a frustração de planos, a impotência ante eventos externos e extremos. Pelo sim, pelo não, melhor não deixar nada para depois, vai que vem outra por aí? Me deixa pular meu carnaval logo em janeiro.
Presente
A percepção do tempo é subjetiva, como bem diz a música.
"Sem você, o tempo para, com você o tempo voa." (Kid Abelha, No seu lugar)
E quando o passado é dinamitado e o futuro adiantado o que nos sobra? Como viver o presente-presente mesmo se me distancio de tudo que me trouxe até aqui e se o medo de olhar pra frente faz com que eu apague o futuro ao trazê-lo por agora?
Com tempo — e com o Tempo — vamos aprendendo.
No mais, sem mais,
Abraços ictiomercuriais,
Thiago Ambrósio Lage (@thamblage)
Gotas de mercúrio
Romantífica (vulgo meu livro mais recente) está no mundo! No livro trago contos que exploram a interface entre ficção científica, romance e relacionamentos (explico um pouco aqui). Quer comprar o seu exemplar? Basta acessar o site da editora.
Sobre o ano que vem, fermentando ideias sobre séries de texto. Talvez 22, 25, 78…
Disse que pararia com as playlists, mas hoje deu vontade, vai uma playlist pomodórica com mais ou menos 25 minutos. Dessa vez o tema Tempo e só com nacionais. Numa edição antiga, fiz a playlist Tempo com internacionais que também coloco aqui.
Mercúrio retrógrado
Aqui trago alguma edição antiga da newsletter que se relacione à edição atual. Hoje trago uma edição antigaça, bem do comecinho da newsletter, de quando eu ainda estava aprendendo a fazer isso. Não que hoje eu já saiba, acho que o aprendizado é contínuo.
Obrigado pela leitura!
Se gostou da newsletter, pode querer conferir o que tenho produzido como escritor em meu site, ou pode querer apenas me seguir nas redes instagram e facebook e ficar por dentro de minhas bobagens e novidades.
obrigado ótimo abraços e um santo natal e m 2024 pleno de paz e resultados...
Adoro pensar sobre o tempo (não à toa virei historiadora. E por falar nisso tem um historiador alemão que talvez te interesse, Koselleck. Ele cunhou as metáforas espaciais espaço de experiência e horizonte de expectativas pra falar sobre nossa percepção passado/futuro. Basicamente desde a revolução francesa a gente adotou o futuro como o tempo privilegiado - como tudo muda o tempo todo, o passado deixou de nos ensinar a como viver. Eita que parênteses grandes!) Adoro suas playlists.
Um abraço