Sigo a minha tradição da linha editorial confusa e trago novamente ficção aqui, agora pela terceira vez (third time is the charm?).
O conto que segue foi publicado pela primeira vez como um conto extra em uma edição especial da revista Égua Literária em 2023. Ele foi editado, preparado e revisado por Gabriel Yared. Como o conto não está mais disponível para download, quis trazê-lo aqui para vocês como um presente de halloween.
Aproveitem!
O girassol e a dama-da-noite
Thiago Ambrósio Lage
— Tem certeza que não tem problema você ficar com a Jolie? — Juliana acariciou os pelos da cachorrinha em seu colo, agora dourados pelo fim de tarde. — Eu posso demorar pra voltar.
— Nada, vou adorar! E depois que Panqueca partiu, Pamonha tá muito sozinha. E vai fazer bem pra Jolie uma casa com quintal, vai virar cachorra de sítio! — Carol olhou para a cachorrinha no colo da amiga, da ex, e logo desviou para as pontas dos próprios pés, para o lago de Palmas, para as pessoas na praia da Graciosa, para as lanchas e jet skis que voltavam à terra depois de um dia de lazer.
As duas mulheres ficaram caladas por alguns minutos, sem competir com o barulho dos carros ou da música alta de um flutuante que seguia para o cais.
O sol tocou o horizonte.
— Você não vai voltar, né? — Carol engasgou nas palavras havia muito ensaiadas.
Juliana tirou as sandálias e entregou Jolie a Carol. Ignorando a pergunta, ela levantou a saia até os joelhos, tentou juntar os longos cabelos negros num coque bagunçado e caminhou em direção à água, murmurando:
— Vou molhar os pés. Vou sentir falta disso. Se tivesse trazido o biquíni, banhava.
Carol suspirou. Com Juliana, ela nunca sabia se o silêncio já era uma resposta. Algo que a irritava como namorada, mas agora era uma pequena contrariedade.
As cores seguiram a sequência de praxe no céu claro de julho. Laranja e dourado. Amarelo e violeta. Vermelho e azul profundos. Carol resmungava elogios à cachorrinha enquanto tirava o celular da bolsa e batia umas fotos. Assistir àquele pôr-do-sol era algo trivial, mas algo no céu fez das cores naquele dia mais intensas que o habitual. Ela também fotografou a amiga que se aproximava descalça, à contraluz, com a pele bronzeada e o rosto molhado de suor? Lágrimas? Água?
— Depois me manda essas fotos, esqueci de trazer meu celular.
Carol suspirou. O silêncio era uma resposta.
***
Pouco depois de o porteiro anunciar a chegada de Catarina, a campainha toca. Juliana já havia se trocado, usava agora um vestido de algodão cru, o que deixava o tom de sua pele ainda mais quente. Para combinar, uma rasteirinha e biojoias, o estereotípico anel de coco e um colar triplo de sementes de açaí. A casa também tinha sido arrumada e, por hábito, não por necessidade, a mesa estava posta com dois pratos.
— Oi amor, até que chegou depressa. Veio de moto, né? Eu ainda estou terminando de ajeitar a comida. Tá linda de roupa social, eu não sabia que era uma ocasião formal. Será que devo trocar minhas sementes por pérolas? — Juliana caçoou da namorada e a recebeu com um beijo.
— Ah, eu não estou com fome e vim direto. E você está perfeita assim, como sempre. — A recém-chegada tirou o blazer, colocou-o junto da bolsa preta de couro e do capacete na mesa de canto e se sentou no sofá. Catarina tocou o ombro de Juliana, sua mão ainda mais clara que o vestido da namorada. — Tomou bastante sol hoje, hem? Sua pele chega a arder. Coloca uma musiquinha pra nós?
— Tenho que olhar a panela, pode pegar meu celular aí na mesinha, tá desbloqueado.
— Você sabe que não sei usar essa coisa. Ainda se fossem uns vinis...
Juliana escolheu uma playlist de música clássica ao piano, um dos poucos gêneros que não desagradava a nenhuma das duas.
— E o que você fez pra jantar?
— Jura que não vai rir? Carne de panela. Pensei em fazer algo mais sofisticado, mas é o prato que mais amo. Carne bem suculenta e macia desfiando, caldo encorpado, bom pra comer com farinha, com um arrozinho branco. Não preciso de mais nada, só uns brigadeiros pra sobremesa.
Catarina ouviu a resposta contorcendo o nariz, só desfazendo o semblante de desaprovação ao ouvir a palavra brigadeiro.
— Esse é um doce que eu sempre quis experimentar. Fico curiosa em porque tanta gente é alucinada por ele, pois parece tão simples. Na minha época, eu gostava de chocolate amargo. — A expressão grave voltou ao rosto de Catarina. — E essa carne, vai alho, né? — Ela coçou o nariz e os olhos. — Estou sentindo daqui.
— Vai, mas é bem pouquinho. Não é possível que vai te fazer mal. Eu achava que isso fosse lenda. O alho te machuca?
— Não, é como se fosse um tipo de alergia. Incomoda só, me deixa um pouco zonza. Mas obviamente nunca comi, né? Até onde sei, é algo que vem no sangue. Tanto que com cruzes ou religião é o contrário, eu não ligo pra isso. Nem toda lenda é verdadeira.
— Mas algumas são, né? — Juliana ri. — Lembra da primeira vez que veio aqui e ficou parada na porta até eu te convidar pra entrar?
— Eu estava tão ansiosa. Desde a primeira vez, eu soube que era pra sempre.
Catarina sorriu pela primeira vez desde que chegou, com as longas presas visíveis. Desde que tinha se aberto com Juliana — ou “saído do caixão” —, o combinado era que ela não precisaria disfarçar nada na frente da namorada. E isso era um alívio.
— Mas bem... eu tive que aprender a tolerar esse perfume doce que você usa — Juliana continuou —, então aguente um pouquinho por mim. É só por uma noite. Depois de hoje, nunca mais. Ainda mais que devo herdar esse tipo de alergia de você.
— Bom, sabe porque uso o perfume. Sem ele, sua cachorrinha já teria enlouquecido. Tudo que eu faço é sempre por você. E confesse que gosta dele, até tatuou a flor.
Juliana terminou de servir seu prato e passou a mão pelo pulso, tocando a tatuagem recente, mas já cicatrizada, de uma dama-da-noite.
— Tatuamos, né? Que loucura foi aquela? E a gente falando para o tatuador que você tinha problema de circulação para ele não estranhar... Pena que a sua não ficou. Deixa eu ver como está.
Catarina mostrou o pulso à namorada, e, mesmo em sua pele clara, era quase imperceptível a sombra amarelada do que tinha sido um girassol. Juliana começa a comer e a teorizar.
— Será que a minha vai ficar depois que você me transformar?
— Não faço ideia, amor.
— Mas já viu algum dos seus tatuado?
— Não, mas sabe como é, não somos um tipo muito social. Aqui mesmo em Palmas sou quase a única nesses trinta e poucos anos. Fiz bem em vir pra nova cidade logo e marcar meu território.
— Eu adoro as histórias que me conta daquela época.
— Era complicado, mas divertido ver a cidade nascer. Vai ser triste ir embora agora que meu tempo aqui já venceu. Mas agora vou acompanhada, vamos juntas.
— Do que vai sentir falta?
— O melhor da cidade vou levar comigo.
— Boba, estou falando sério, não é possível que não se apegue a nada.
— Acho que dos parques. E da facilidade pra me alimentar. Hoje me viro com as capivaras, mas mesmo antes, numa cidade com tantos forasteiros anônimos, nunca passei vontade de nada.
— E de outros lugares, da sua primeira vida? Sente falta de alguma coisa?
— De algumas coisas, sinto, sim. Mas por que isso agora?
— Curiosidade, né? Hoje eu vi o pôr do sol na praia, acho que disso eu vou sentir falta. E da Jolie. É a minha despedida.
— Foi melhor ela não estar aqui hoje, até pra segurança dela. Mas o que foi? Tá mudando de ideia?
— Não, não é isso. Eu estou certa, mas só fico reflexiva.
— Bom, você disse do pôr do sol no lago, eu me lembro com carinho de ver o sol nascer no mar.
— E queria ver de novo?
— Oxe, que besteira. Só se fosse pra eu virar pó.
— Não assim, e se de alguma forma o sol não te queimasse?
— Nem tem como. Já ouvi histórias de que a transformação seria reversível, porém não passam disso: histórias. Exatamente por isso te dou a escolha que eu não tive.
Juliana raspou o molho do prato com uma fatia de pão e bebeu um gole generoso de vinho. Ela se levantou e foi até a cozinha pegar os brigadeiros, falando em voz alta pela casa:
— Mas... se eu não escolher isso, qual seria a outra opção?
— Ora, continuar sua vida sem mim. Já viveu muito tempo sem mim antes, conseguiria viver um pouco mais.
De volta à mesa, Juliana devorou o prato de brigadeiros. Viver um pouco mais.
— E se te dessem a escolha hoje, o que você escolheria?
— Se fosse pra ficar com você, eu escolheria me transformar. Quando te conheci, eu soube que tudo tinha valido a pena. Eu tive meus anos de insatisfação, de não me conformar. No começo foi muito duro, tentei conviver com as pessoas da minha antiga vida, e logo comecei a perdê-los. Para evitar a dor, fui nômade até vir parar aqui. Por isso, acho bom sairmos da cidade logo que eu te mudar. Mas hoje sou o que sou. E se isso me levou até você, sou a mulher mais feliz do mundo.
— Mas e se eu não existisse?
— Como vou saber? Não digo que minha vida é boa ou ruim, ela só é. Me lembro pouco de minha primeira vida, e olha que nem faz tanto tempo. Devia ter mantido um diário, mas qual o sentido de eternizar o que não se pode ter mais? A solidão dói, talvez por isso eu não me transformasse. Mas isso é irreversível, então aproveito a vida que tenho.
— Interessante. Eu sempre imaginei que você gostasse de ser assim.
— E como não gostar, se não tenho opção?
— E com os outros que nem você, é a mesma coisa?
— Não sei, não tenho convívio. Do mesmo jeito que na natureza são incomuns grandes comunidades de predadores, com a gente também é. Já ouvi falar de casais, o que será nosso caso, ou pequenos grupos que permanecem juntos como bandos, mas nenhuma organização social. Não existe uma assembleia secreta dos vampiros, taí mais um estereótipo falso. Seria tão sem sentido quanto uma grande assembleia de onças.
— É, pensando dessa forma, faz sentido. E você é mesmo cheia de pintinhas, minha onça. E eu sou só uma capivara perdida na noite. E logo mais, um girassol sem sol. — Juliana pisca para a namorada enquanto enrola o último brigadeiro na ponta dos dedos e suspira. Ela dá uma mordida no doce e o deixa pela metade no pratinho.
— Amor, vai ficar tudo bem. É o único jeito de ficarmos juntas de verdade — Catarina falou com suavidade, tomando as mãos de Juliana entre as suas. — Seu pulso está acelerado, relaxe. Porque está tão nervosa? Medo da dor?
— Também, claro, mas tem coisas que acho que você não entende mais. É difícil me desfazer de tudo, de mim mesma. Já não tenho mais família, mas ainda tenho meus amigos, meu trabalho no laboratório. Jolie.
— De qualquer forma, você já ia viver mais que a cachorrinha.
— Não é só ela, é tudo de que vou abrir mão. Do sol. Eu não sou tão fria quanto você. Bem, pelo menos ainda não. — Juliana tirou as mãos de entre das mãos da namorada e pegou o celular. — Veja aqui como estava o pôr do sol hoje... É meio triste saber que nunca mais verei isso sem ser por foto ou vídeo.
— Mas verá as noites, especialmente as noites sem lua, longe das cidades. Não é uma morte, é uma segunda vida. Uma vida juntas. Nossa vida eterna.
O meio brigadeiro permanecia no prato, na mesa entre as duas. Uma última badalada açucarada do tempo de Juliana. Terminar o doce seria dar prosseguimento à programação da noite.
As duas mulheres permaneceram em silêncio, Juliana encarando o doce fixamente, Catarina observando o céu noturno pela janela, contemplando as luzes da cidade na vista privilegiada do apartamento.
A playlist terminou de tocar.
Juliana terminou o brigadeiro e se levantou.
— É isso, né? E agora, como é que fazemos? Eu preciso deitar?
Catarina se levantou também, com as presas expostas.
— Não tem necessidade. Me desculpa, amor. Vai doer, sim, mas vai doer mais em mim que em você.
— Tudo bem. Eu fiz minha escolha. — Juliana puxou o cabelo comprido num rabo, expondo o pescoço. Seu dedo se enganchou no colar e o arrebentou.
Sementes de açaí quicaram pelo chão, salpicando-o com pontos marrom-claros.
Catarina se contorceu, o impulso era mais forte que ela. Sem domínio de suas ações, influenciada por mais uma lenda que se mostrava verdadeira, se agachou e começou a contar em voz alta.
— Uma, duas, três, merda, quatro, cinco, justo agora, seis, sete,...
Juliana foi rápida, ela só tinha uma chance, um golpe, uma estaca e um martelo escondidos sob o tampo da mesa. A janela de oportunidade era estreita, assim como o espaço entre os ossos de Catarina. Pelas costas, justo o ângulo mais difícil.
— Vinte e nove, trinta, trinta e uma...
O golpe foi preciso, a madeira penetrou a carne morta até o que antes era o centro da vida. A energia da biomassa vegetal, anos e anos de acúmulo solar, irradiou pelo corpo de Catarina, fazendo com que ela e a estaca fossem agora uma única entidade inerte. A contagem parou.
— Eu que peço desculpas — Juliana disse —, mas ainda não estou pronta. Se eu falar que doeu mais e mim que em você, estarei mentindo. — Ela girou o corpo paralisado da namorada e o deixou de lado, com cuidado para não mover a estaca. — Tentei falar antes, mas não consegui. Seu ceticismo a impede de perceber que pra tudo há um jeito, menos pra morte. E você não está morta. Vive uma segunda vida.
Juliana levantou-se e começou a ajeitar a sala, fechando as cortinas blecaute e recolhendo os objetos da mesa. Ela foi para o quarto, agora um laboratório improvisado, e voltou com uma maleta de primeiros socorros e alguns tubos.
— Não sei se está me ouvindo, mas te explico. A ciência vai nos levar pra além de onde a fé falhou. — Ela pegou uma seringa e um bisturi e extraiu amostras de fluido e tecido do braço de Catarina. — Se existir uma cura, vou encontrar. Vamos ficar juntas, sim, mas primeiro do meu jeito. Te dou agora a escolha que você não teve.
Fim
No mais, sem mais,
Abraços ictiomercuriais,
Thiago Ambrósio Lage (@thamblage)
Gotas de mercúrio
Ainda em clima de halloween, tenho duas histórias de fantasma e uma de bruxa na praça:
No conto Seis estrelas, publicado na Escambanautica, acompanhamos os erros de Míriam, uma motorista-fantasma de aplicativo que roda nas noites de Belo Horizonte. Caso tenha curiosidade de ler, seja para torcer a favor ou contra, a revista está disponível na Amazon! O conto é finalista na categoria narrativa curta de fantasia no prêmio Odisseia de Literatura Fantástica 2024.
E se um fantasma resolvesse pular carnaval em Olinda? Este é o tema de Carnaval encarnado, conto disponível na revista A Taverna.
A Bruxa tem uma missão que será cumprida por meio de passos de dança e uma elaborada coreografia. Siga os passos dela em A Bruxa dança, uma ficção-relâmpago publicada originalmente na Eita! magazine e republicada aqui na Mercúrio em Peixes. Se quiser levá-la no Kindle, ela também está disponível na Amazon. Essa ficção-relâmpago foi finalista do Rosetta Awards 2021.
Tem conto novo na área! Eu contribuí com um conto para a Depois: uma coletânea de futuros, que saiu pelo selo SAIFERS em parceria com a ZEIT. Cada autoria foi desafiada a escrever um conto baseado em alguma pesquisa da ZEIT, e eu fiquei responsável por abordar as imagens geradas por IA. Meu conto se chama A arte e a vida imitam uma à outra e vice-versa.
Fiz uma playlist para escrever O girassol e a dama-da-noite, e como tem leitores que curtem e sentem falta das playlists, a compartilho aqui:
Obrigado pela leitura!
Se gostou da newsletter, pode querer conferir o que tenho produzido como escritor em meu site, ou pode querer apenas me seguir nas redes instagram e facebook e ficar por dentro de minhas bobagens e novidades.