Eu tinha escrito uma edição extra para a Mercúrio em Peixes essa semana, no tema do evento O Texto & O Tempo. Estava aqui editando e pensando que tem um assunto que veio muito para primeiro plano com o primeiro turno das eleições. E ao mesmo tempo em que não queria só me repetir e engrossar o coro da indignação com este desgoverno de merda, o que já fiz na Mercúrio, eu também me sentiria mal falando de qualquer outro assunto como se nada estivesse acontecendo. E como escritor é mestre em falar das coisas sem falar das coisas, lembrei de uma ficção-relâmpago minha neste estilo que foi publicada na primeira edição, a #000, a zerésima da Eita! Magazine.
Ali eu tentei colocar… enfim, coisa mais chata o autor explicar o próprio texto, né? O fato é que na revista o conto foi traduzido pela maravilhosa Iana Araújo e foi finalista do Rosetta Awards, que premia fição especulativa traduzida, em 2021. Sua versão em inglês pode ser lida gratuitamente no site da Eita! Magazine, e a versão em português, lançada depois de maneira independente, é disponibilizada aqui, hoje, agora e por quanto tempo ela ficar no ar, no corpo desta newsletter. A história poderá também ser baixada na forma de ebook para o Kindle gratuitamente de 07/10/22 a 09/10/22. Se você tiver um Kindle ou ler nos aplicativos kindle, eu recomendo que baixe para babar na capa e na ilustração interna perfeitas do Raphael Andrade. O texto teve edição de Lucas Ferraz e preparação de Iana Araújo.
Com vocês, a dança da Bruxa.
A Bruxa Dança
Thiago Ambrósio Lage
Cinco, seis, sete, oito.
Perna direita.
Perna esquerda.
Levanta os braços, meia pirueta.
Chuta o ar com a perna esquerda.
Vejo ao longe o fim da rua deserta. Sinto os olhos sobre mim. Nas frestas e vãos, de suas casas me olham. Medo, curiosidade, fascínio. Uma bruxa dança. A Bruxa dança. Numa vila dessas, não precisamos de nome. A Bruxa, o Padre. Não o vejo, mas sei que está no alto da torre, me observando. Pensamos em talvez bater o sino para marcar meu ritmo, mas isso poderia atrapalhar o passo das fadas. O passo do Padre era esse, o repouso. Sair de cena e deixar os outros dançarem.
Bate a mão na coxa direita.
Mais um passo, uma pirueta. Gira. Suspira.
Bate o cajado três vezes no chão.
Venço a distância de mais umas casas, nos intervalos dos meus movimentos entreouço os sussurros atrás das portas, os pequenos prantos. Sinto o estranhamento. “Onde está o Padre? Como deixa ela fazer isso?” Eu sou só uma bruxa, mas para eles, sou a Bruxa que hoje cruzou uma fronteira. Sempre tive minhas funções, e o Padre as dele. Para os males do espírito ele tinha as respostas; para os males do corpo, eu tinha as curas. Todos iam ao meu casebre fora da vila. Já levavam o pagamento na hora da consulta. Melhor deixar de uma vez uns ovos, uma galinha, um pedaço de tecido ou até umas moedas a ter que retornar à casa da Bruxa. Em troca, eram benzidos e levavam embora ervas, chás, garrafadas, amuletos.
Repete os passos desde a perna direita. Três vezes.
Muda o passo. Braço, braço.
Aponta o cajado, recita o encanto.
Um passo largo pra frente, um passo curto pra trás.
Eu poderia ter escolhido uma dança mais simples, mas não teria o mesmo efeito. Precisava vencer a Vesícula Violeta. Meus remédios não eram suficientes, muitos da vila já tinham partido, conforme me contavam as covas frescas no pequeno cemitério atrás da igreja. Afastar a doença com meus encantos e com a dança era impossível, então só restou a mim, à Bruxa, amedrontar os aldeões e fazer com que ficassem em casa, a observando de longe. Só assim teríamos certeza de que as fadas, em seus passos, visitariam a todos.
Balança, gira, repete, repete.
Mais casas vencidas, a metade já foi.
Perna esquerda.
Perna direita.
Cruza e descruza os braços, agacha.
Cada fada levava consigo duas coisas, um pote e um diabrete. Era função dos pequenos diabos perfurarem os aldeões com uma agulha. Chamuscar a agulha, mergulhar no pote e perfurar. Chamuscar, mergulhar, perfurar. Eles sentiriam apenas uma picada, e ao não ver os diabretes, invisíveis pelas artes das fadas, achariam mesmo que tinha sido um mosquito. Foi difícil convencer o Padre da necessidade dos diabretes, mas mesmo que as fadas pudessem tocar o objeto de ferro, lhes faltaria a chama para a operação delicada. Às fadas restou a missão de encobrir os diabretes e levar o frasco com o líquido amarelo-dourado. Estes eram os passos das diminutas criaturas em nossa coreografia.
Explode um grito.
Bate a mão na coxa esquerda.
Mais um passo, uma pirueta ao contrário. Gira. Suspira.
O Cientista era o mais novo morador da vila. Tinha chegado da cidade, da universidade, disse que o ar aqui lhe faria bem. Ele tinha uma pequena horta, mas não lavrava a terra como o Hortelão. Tinha habilidade com vidro, ferro e madeira, mas não como os mestres Vidreiro, Ferreiro e Carpinteiro. Era um homem sábio, mas não tinha todas as respostas, como o Padre. Ele tinha mais perguntas que respostas, era bem verdade. Muitas dessas perguntas eram para mim, e era o único aldeão que parecia não me temer. Vinha à minha cabana com frequência apenas para tomar chá e conversar. Numa dessas conversas, quando a doença levava a todos sem distinção, fosse homem ou mulher, ancião ou infante, ele me trouxe o frasco amarelo-dourado. Minhas ervas e unguentos podiam aplacar a dor e a febre, mas eu já tinha perdido as esperanças de salvar qualquer doente do destino que os aguardava atrás da igreja. Aquele remédio me encheu de esperanças, mas tinha dois problemas: ele tinha que ser dado antes que as pessoas estivessem doentes e tinha que ser com a picada de uma agulha. Impossível, eu disse, convencer as pessoas dessa loucura. Ele riu apontando a minha casa, os meus frascos de ervas secas e respondeu que o impossível era o que eu fazia sempre. Naquela noite traçamos o plano.
Roda o cajado três vezes. Repete os passos.
Repete tudo três vezes.
Conversei com uma princesa das fadas, que achou a ideia bem divertida. Além disso, com tantas mortes, as poucas oferendas que seu povo recebia vinham banhadas em lágrimas, e todo mundo sabe que as fadas preferem o doce ao sal. O Cientista conversou com o Padre, que reticente teve que reconhecer a impotência de sua oração e seus milagres. Um dia e uma noite sem sinos ou missa, era tudo que precisávamos para abrir a cidade para que eu, o povo da floresta e o povo das profundezas pudéssemos entrar livremente. Conseguir a ajuda desses últimos teve que ser um trabalho conjunto meu e do Cientista. Chamar um dos príncipes do Inferno e fazer um pedido era um ritual para pelo menos quatro mãos. O tolo Cientista pagou com gosto, entregou o que acreditava não possuir. Acordos feitos, só preciso terminar minha dança e confiar em meus parceiros. Cada um que se importava estava em sua posição, fazendo seu papel. Até os moradores, mesmo apenas ficando em casa. Logo a vila estaria livre da doença.
E o Alcaide? Bem... é um paspalho que insistia em passar urina e estrume nas feridas e outras coisas que só atrapalhavam.
Todos tinham um passo e ajudavam.
Ele não.
Fim
No mais, sem mais.
Abraços ictiomercuriais e dia 30 é 13 confirma!
Thiago Ambrósio Lage (@thamblage)
PS.:
O Texto e o Tempo: Dias 5 e 6 de novembro vai rolar um EVENTO SOBRE NEWSLETTERS. Vamos discutir newsletters brasileiras em um final de semana, com mesas redondas e workshops. Serão abordados diferentes aspectos desse novo movimento, com destaque para a reflexão e a escrita. O evento será online e aqui você pode encontrar mais informações sobre O Texto e o Tempo.
Tem episódio novo do Incêndio na Escrivaninha na praça! E com um tema super oportuno: Ansiedade!
Obrigado pela leitura!
Se gostou da newsletter, pode querer conferir o que tenho produzido como escritor em meu site, e como podcaster no Incêndio na Escrivaninha, junto das escritoras Ana Rüsche e Vanessa Guedes. E leiam as obras da Plutão Livros! Ou pode querer apenas me seguir nas redes twitter, instagram e facebook e ficar por dentro de minhas bobagens e novidades.
Muito bom ler esse conto novamente!
Li esse conto no começo do ano e achei tão perspicaz, adorei! :)