Na coleção de palavras que usamos tanto que correm o risco de perder o significado tem uma que estrelou alguns papos online que presenciei mês passado: gatekeeper/gatekeeping. Grupo de telegram, muita gente na ágora de bolso, as falas acabam se perdendo mas fica a sensação de vários fios a serem puxados.
Como acho que sou esperto e morro de medo de falar bobagem, fiz uma extensa pesquisa (vulgo consultei na wikipédia e alguns dicionários) sobre o significado da expressão e sua origem. Ainda bem. Jamais imaginaria que o termo vem do jornalismo, com o significado BEM resumido de quem decide o que vai para a edição ou ao ar, que informação vai para o público. Em bom português, o gatekeeper é o porteiro que decide o que entra e o que sai. Achei interessante que o termo surgiu em estudos sobre a alimentação medieval, teorizando que o acesso ao alimento mesmo para pessoas ricas era limitado pelos gatekeepers-porteiros que controlavam o fluxo de bens entre as cidades muradas.
Mas palavra é coisa que a gente usa do jeito que quer, e gatekeeping (posso traduzir como “porteiragem”? Muito obrigado!) passou a significar também pessoas que querem regular do que os outros gostam, como eles podem ser. Desses gatekeepers que falo aqui: pessoas que se acham numa posição de julgar quem é digno ou não de usufruir de determinada obra ou adotar determinado estilo. E nesse sistema doido de "fiscalização de gostos" quem paga o pato são as minorias: os adeptos da porteiragem costumam ter um recorte bem definido. "Comemorou a copa? Diz aí a escalação da seleção de 70." "Curte Agatha Christie? Me cita aí o nome de cinco livros dela. E não vale nenhum que foi adaptado para o cinema!" E assim os adeptos da porteiragem transformam qualquer momento de curtição em um jogo de perguntas em respostas para medir o valor do outro. Aqui o fluxo a ser controlado não é de alimento ou conteúdo, mas de pessoas. Talvez com medo de o conteúdo passar a ser menos exclusivo? Realmente não sei o que se passa na cabeça desses caras.
Escrevendo em janeiro, não deixo de pensar em Jano, deus romano das passagens, travessias e portões. Sim, ele dá nome ao mês que indica a passagem ao novo ano, e por habitar as portas, muitas vezes era representado com duas faces, uma que olha para a frente e outra para trás. Uma para o futuro e outra para o passado. Pensando em nossos porteiros, vejo os dois rostos olhando para dentro e para fora. Para o público e para as obras. Para o público num misto de medo e raiva, para a obra com o fascínio e assombro. Mas Jano é porta-porteiro e estátua: não se move. Incapaz de se afastar dos outros, os afasta. Incapaz de se aproximar do objeto de seu fascínio, tenta guardá-lo para si sem nunca tocá-lo. A alegria boa é a compartilhada, e isso ele não conhece. Não é difícil identificar um desses porteiros, basta 15 minutos ou menos de twitter.
Quem nomeia os porteiros? Bom, os de conteúdos, sejam jornalistas, editores e afins, podem ascender via histórico acadêmico, provas de autoridade, ou aquele misto de sorte, oportunidade e esforço. Aquele misto de coisas que acaba selecionando com muito mais frequência um perfil demográfico que qualquer outro. Algo que está mudando, felizmente. Já os porteiros de gente, basta se achar superior e ter a cara de pau de fiscalizar o gosto alheio que você pode ser um.
O que acontece com a literatura nessa malha de filtros? Especialmente se pensarmos no consumo e apreciação de ficção científica no Brasil? Considerando a porteiragem de conteúdo, de fora nem tudo chega, de dentro, nem tudo tem destaque. E na porteiragem de público… sempre os mesmos papos. Gente que não quer que Duna (ou qualquer outra obra) se popularize por causa do filme. Que olha com desprezo para reedições, que não quer ter seus autores profanados. E ao mesmo tempo, gente que despreza autorias que trazem diversidade ao lado de dentro (ou de fora?) do portão em sua eterna cruzada contra a "lacração". Isso é triste pra caramba. Um gênero que traz a marca do sonho e da imaginação de futuros e realidades que podem ser nossas utopias, cada vez mais afastado de pessoas que poderiam usufruir de todo esse manancial de boas histórias, histórias de não-realidades que ajudam a tornar a nossa realidade mais suportável.
Entrei nessa pira porque resolvi falar de livros aqui, livros que li e curti e acho que mais pessoas poderiam gostar. Sem muita cerimônia, mas com muito gosto. Pensando em me tornar um "despoteiro", um gateunkeeper. Há desporteiros que fazem questão de manter os portões abertos e que pessoas e livros transitem livres. Também há os que nos ajudam a pular o muro dando pezinho, trazendo escadas. E vale citar pessoas e projetos que têm desempenhado de forma brilhante este papel.
, por exemplo, está na porta e quer que todo mundo entre e ainda dá uma piscada cúmplice aos atravessantes enquanto fala de grandes clássicos e obras contemporâneas da ficção científica com uma imensa bagagem acadêmica e de forma tão acessível e próxima que a leitura parece viva e nos convida. Outro exemplo é Lady Sybylla que em seu site, Momentum Saga, traz sempre boas resenhas de todo tipo de obra de ficção científica com um olhar crítico afiado, pautadas por nosso espírito contemporâneo de inclusão e diversidade. A também arrasa em sua newsletter, a trazendo junto às obras comentadas, discussões sobre o fazer literário. Para quem é de podcast, posso citar o Boteco dos Versados, o Pindorama e o 30:MIN com diferentes abordagens e elencos. Estes são apenas alguns exemplos e ficarei feliz se trouxerem mais nos comentários.Com tanta desporteiragem, o objetivo é que voemos por cima desses muros, ou voemos baixo num parkour literário que não conhece limites. A literatura deve ser para todos e para quem quiser, e tenho esperanças que cada vez com mais diversidade e autonomia.
Será que posso ser um desporteiro e jogar nesse time? Não sei, mas se os porteiros não pedem autorização para ninguém, porque eu deveria pedir?
No mais, sem mais.
Abraços ictiomercuriais,
Thiago Ambrósio Lage (@thamblage)
PS.:
Minha coletânea Romantífica se encontra em processo de produção na editora Urutau. É um grande “vem aí” e farei muito barulho por aqui e nas redes quando for lançada.
Meu conto Seis Estrelas saiu na revista Escambanáutica. É uma fantasia urbana ambientada em Belo Horizonte e protagonizada por uma motorista-fantasma de aplicativo com algumas pendências com sua viúva. A trilha sonora do conto poderia muito bem ser Encontros e Despedidas. A revista é gratuita e pode ser obtida em diversos formatos eletrônicos no site da editora.
Além de dar uma repaginada na newsletter, atualizei e repaginei meu site! Modéstia à parte, ficou bem bonitão! Dê uma passada lá depois para conferir: www.thamblage.com.
Na minha edição sobre vinil e fatiar o tempo eu comentei sobre o método pomodoro, e vendo o comentário de
eu pensei: porque não fazer playlists com a duração de uns 25 minutos? O plano é fazer pelo menos uma por edição da Mercúrio em Peixes, e hoje tem: Seis Estrelas. É uma playlist com algumas favoritas da Janis Joplin para celebrar o lanámento do meu conto pela Escambanáutica. Espero que curtam!
Obrigado pela leitura!
Se gostou da newsletter, pode querer conferir o que tenho produzido como escritor em meu site, e como podcaster no Incêndio na Escrivaninha, junto das escritoras
que a gente sempre possa ter a felicidade de ler por prazer! obrigada pela menção desporteira e um lindo ano novo para ti! <3
adotando a expressão gateunkeeping pra ontem!! amei. a desporteirização é super necessária e acho que pra literatura, que já é uma mídia pra poucos, é ainda mais. ah, e correndo pra baixar a escambonáutica aqui! <3