Estrutura narrativa. Assunto complicado e onipresente em papos de leitores-escritores-leitores. Uns takes que já foram hot, mas de mornos passam a gelados como o decolonialíssimo "nossa, nada a ver jornada do herói" (algumas vezes se referindo à estrutura em três atos) mas que não passa muito dessa crítica "contra tudo que está aí". Pedimos novidade, mas novidades traz estranheza que traz… rejeição.
O famoso caso de gente que pede novidade mas na verdade não quer.
Como sair disso? Ah, tem o Kishōtenketsu, muito bem explicado neste artigo na Perpétua, e que nunca sei escrever sem antes procurar "estrutura narrativa japonesa" no google. Foge ao que chamamos de ocidental (mesmo estando no ocidente falamos do ocidente como se fosse "o outro", não seria melhor falar europeu?). É diferente, mas não é nosso.
Ano passado estive em algumas convenções literárias virtuais, e na Worldcon e Flighs of Foundry rolaram papos de literatura latinoamericana, brasileira. E foi dito da fofoca como a nossa maneira de contar histórias. A fofoca reabilitada pelo simpático meme da galinha servindo café ao pintinho, a fofoca como tradição familiar regada a cafeína e açúcar, e pelo comentário viralmente contestado que fofoca não é edificante. Fofoca edifica sim, é cimento que cola tijolos sociais.
No meio gringo claro que tivemos dificuldade de explicar o que a fofoca significa pra nós. É muito mais que gossip. Fofoca está pra gossip como sentir saudades está pra to miss.
A fofoca, nossa estrutura narrativa por excelência, ainda compartilha elementos com duas outras paixões nacionais: as (tele)novelas e o futebol. Vamos aos pontos a serem observados:
Vaivém ou não-linearidade
Fofoca boa tem que ter uma boa revisão bibliográfica dos envolvidos. Flashbacks são essenciais pra que a história principal faça sentido, em muitas vezes a ação acontece em mais de um núcleo ao mesmo tempo, gerando narrativas paralelas. A fofoca nova reativa as anteriores e planta a semente de fofocas futuras. E num caso contado oralmente, sempre se complementa um fato anterior com uma lembrança extra. Há até fofocas invertidas, em que se inicia do fato-conclusão e a partir daí são analisados todos os eventos que culminaram naquilo. Muitos dos outros pontos que trago são derivados desse vaivém.
Novelas, com sua duração de meses, lançam mão destes recursos o tempo todo pra sustentar a trama. Inclusive a prática de trazer duas ou mais fases é algo cada vez mais comum. No gramado, o vaivém é o da bola mesmo, que ziguezagueia numa série de quase jogadas e assim constroem a narrativa de uma partida difícil, truncada e afins. E enquanto isso, narradores despejam estatísticas, entrecortando o presente com o passado.
Síndrome de Sherazade
Uma história puxa a outra, e quando é fofoca então… O coadjuvante de um é protagonista da outra história colateral, que é pequena e contada dentro da primeira. Ou é só citada seguida de um "depois eu te conto, deixa eu terminar de contar isso aqui…" e esse depois pode até ser mais um dia sem Sultão, mas com café. É legal notar a diferença dos lapsos temporais pros momentos Sherazade: aqui falamos de outras histórias que invadem a narrativa principal.
Em novelas, com seus diversos núcleos o que mais temos é isso. As histórias se embaralham — e se interconectam — numa trama digna de qualquer tapete persa. No futebol são as histórias de fora de campo que invadem a narrativa da bola, contando casos de rivalidade, companheirismo, colegas de seleção jogando em clubes rivais, colegas de clube jogando em seleções adversárias. O jogo de despedida, um recorde quebrado, uma estreia como titular: nada disso é o jogo, mas tudo está no jogo e os comentaristas, Sherazades do esporte, narram tudo entre uma jogada e outra.
Detalhes, detalhes
O diabo e uma fofoca bem contada estão nos detalhes. Lembro de uma amiga que levava meia hora pra contar algo que tinha levado quinze minutos para acontecer. Adjetivos e advérbios são hostilizados e quase criminalizados em manuais de escrita. Muitos deles gringos. Claro, um texto densamente povoado por advérbios de modo pode ficar completamente chato. Mas a fofoca pede que não levemos este banimento generalizado ao pé da letra. Fofoca é mais jornada que conclusão, o caminho precisa de cor, cheiro, imersão. A roupa que fulane usava é importante, ou pode só ajudar a audiência visualizar. Ou trazer um gancho pra outra história.
Novela e futebol são muito a arte de povoar e sobretudo esticar o tempo — do capítulo ou da partida — com palavras de uma narrativa. As qualidades e os detalhes que vão tornar cada amor proibido e cada pênalti perdido únicos. Se tirarmos os descritores, toda partida será só placar, e toda novela será sinopse. Não quero saber que a Clara bateu na Laura Prudente da Costa no banheiro, preciso ver exatamente como isso aconteceu. Saber que o Brasil ganhou de 2 a 1 tampouco. Quero conferir com meus olhos se o gol foi bonito e como foi marcado.
A fofoca são os amigos que fazemos pelo caminho
Como dito, jornada aqui vale mais que destino. Fofoca, novela e futebol são narrativas amigáveis a spoilers. Muitas fofocas começam pelo fim, pelo fato, e a narrativa é o caminho até ele, os detalhes suculentos, o contexto. Seja uma gravidez, uma rejeição, separação, chifre, drama de herança, casal secreto… O "como" vai ser maior que o fato. E futebol… tem quem assista a gravações de jogos ou reprises. Acompanhar por pouco mais de 90 minutos a formação de um placar conhecido de antemão é a afirmação mais contundente que o processo é tão mais importante que o resultado.
Um fenômeno comum e divertido do século passado eram os resumos da novela no jornal impresso. Não eram resumos de capítulos passados, mas dos capítulos que passariam na semana seguinte. E ao contrário da cultura atual de fugir de spoilers, a informação antecipada era lida com avidez e discutida antes mesmo da trama ir ao ar. Assistir à confirmação de alguma teoria era sempre um prazer a mais.
A paz de já conhecer o destino nos deixava apreciar melhor a paisagem.
E quem sou eu pra julgar?
Este é o nosso "era uma vez" às avessas, frase que fecha a história com a essência da fofoca: ela traz um julgamento moral. Descompromissado e ambíguo, mas ainda assim um julgamento. Uma fofoca de chifre muitas vezes termina com o veredito que o corno mereceu, que no lugar do corneador talvez não fizéssemos o mesmo mas… quem somos nós pra julgar, né? Essa frase apaga tudo. Depois de toda o escrutínio e julgamento, é o portal que atravessamos de volta pra nossas vidas despreocupadas, é o apito final do julgamento.
Muitas vezes a fofoca (e a novela e o futebol) fomentam um debate. Certo e errado se confundem e narrador e audiência trocam estes papéis por promotoria e defesa. Numa novela ou lance controverso da bola, nosso comportamento não é diferente. É óbvio que tal casal está apaixonado. Tenho certeza que tal lance foi falta. Mas no fim do capítulo, reconhecemos não sermos autores, árbitros ou juízes divinos e aposentamos todas essas convicções temporárias.
Narrador não-confiável vs. narrador-drone
Confiar desconfiando é o lema. Qual a intenção de quem conta a fofoca? Sempre há a possibilidade de conflito de interesses. Ou de ouvirmos uma fofoca de segunda ou terceira mão, já em situação de telefone sem fio. Da mesma forma, uma trama noveslística sempre pode trazer uma reviravolta, uma revelação que inverte a ordem das coisas. Sobre futebol então… impossível confiar num árbitro dolorosamente humano e limitado, ainda mais quando seu time do coração amarga uma derrota.
Pra isso existe o VAR, o famigerado VAR que na literatura encontra sua contraparte no que eu tenho apelidado de narrador-drone. Uma máquina que só registra e relata. Faz pouco tempo descobri que tem gente no futebol que é contra o VAR, o que me surpreendeu, mas faz todo o sentido ao pensar que o narrador não-confiável faz parte da experiência. Aqui talvez eu possa fazer a Sherazade e puxar outra narrativa nossa como parênteses: a história de pescador. Que sem graça seria se tudo fosse em vídeo, foto e registros! Esta narrativa morreria.
O narrador não confiável me permite questionar e teorizar, e assim de alguma forma me apropriar da narrativa.
Uma fofoca clássica
Essa seção estava no plural mas resolvi trazer apenas um exemplo: Dom Casmurro. Confesso que fui ler pela primeira vez só no ano passado, pensando justamente na escrita dessa edição da Mercúrio em Peixes. E caiu como uma luva, aquilo tudo ali é uma grande fofoca, ou melhor, um rosário de fofocas. É uma história que nos faz tecer julgamentos sobre mais da metade do elenco. E no principal dos julgamentos, o famoso dilema "será que traiu?", julgamos sem acesso aos fatos e muitas vezes colocando como acusado a vítima ou vice-versa. Faz um tempo que eu estava enrolando pra terminar esta newsletter, e o grande gatilho foi ler essa análise delicinha do Dom Casmurro feita pela
. De certa forma ela me fez perceber o incômodo que eu tinha quanto ao "cancelamento" de Bentinho pelo twitter. E me trouxe mais coisas pelas quais julgar essa Mona Lisa invertida que esconde tanto em sua carranca quanto a famosa pintura em seu sorriso.Mas diz aí, que boa fofoca narrativa nacional tem lido ultimamente? Pensou mais alguma história que se encaixa nessa estrutura?
Sem mais, abraços ictiomercuriais (e quem sou eu pra julgar, né?),
Thiago Ambrósio Lage (@thamblage)
PS.:
Comprou Romantífica na pré-venda? Quando esta newsletter sair, boa parte deles já estará na estrada. Inclusive algumas pessoas do estado de São Paulo já receberam. Não comprou ainda? Na próxima edição digo como comprar direto comigo.
Já recebeu e leu Romantífica e amou? Se quiser pode deixar estrelas e resenhas no Skoob e Goodreads. Eu vou ficar bem feliz e isso ajuda o livro a chegar em mais gente.
Finalmente me cadastrei no programa de associados da Amazon, então sempre que comprarem alguma coisa com os links que eu compartilhar por aqui, receberei uma comissão. Por hora estou longe de pensar em monetizar a newsletter, mas é um jeito de ganhar uma graninha pra pagar pelo menos os petiscos que como enquanto escrevo.
Seguindo a tradição, mais uma playlist pomodórica com mais ou menos 25 minutos. Tirei estas músicas de uma playlist maior com o que chamo de músicas narrativas, que contam alguma história. Espero que curtam!
Obrigado pela leitura!
Se gostou da newsletter, pode querer conferir o que tenho produzido como escritor em meu site, e como podcaster no Incêndio na Escrivaninha, junto das escritoras Ana Rüsche e Vanessa Guedes. Ou pode querer apenas me seguir nas redes twitter, instagram e facebook e ficar por dentro de minhas bobagens e novidades.
Fofoca, novela e futebol
Muito boa essa edição, Thiago. Pra mim fica cada vez mais claro que todas as regras de escrita servem principalmente para o escritor iniciante. É mais fácil de sair do outro lado se seguir o manualzinho, sejam os 12 passos pro herói ou evitar adjetivos e advérbios.
Mas a Literatura também pode funcionar quando conseguimos evitar essas regras e ainda assim fazer dar certo. E pra isso não tem muito manual. É prática e leitura consciente.
Adoreiiii! Tô lendo basicamente uma enorme auto fofoca que é 'só garotos' da Patti Smith. 💗