É isso, lá vou eu publicar ficção aqui de novo, desta vez como uma homenagem a Palmas que faz aniversário hoje, 20/05/24. A cidade faz 35 anos, e eu faço 18 da minha vida aqui. Parece que foi ontem que amanheci na rodoviária depois de mais de 24h de estrada com a mala cheia de livros, sonhos, ansiedade e esperança. E no fim tudo deu certo, mesmo com o estranhamento constante de ser mais velho que uma cidade, e que praticamente tudo a meu redor.
Já tinha planejado publicar este texto de hoje faz um bom tempo. É uma ficção-relâmpago que escrevi para um projeto que desandou, lá em 2022. Trabalhar com literatura tem um pouco disso também, as coisas desandam, às vezes mesmo com contrato assinado e tudo mais, mas o texto fica. Ano passado, sem ter muito o que fazer com este, decidi que seria meu presente para Palmas.
Precisamos da água e temos uma relação íntima com ela. As cidades sempre brotaram e brotarão às margens dos rios. Quando se fala em colonizar o espaço, a primeira coisa que se busca é água, preferencialmente líquida. Mas a água não é apenas um recurso, ela não segue nossa vontade ou desejo. Ela faz parte de um delicado equilíbrio no ambiente em que está presente. E reconhecer sua importância é reconhecer a necessidade de se respeitar este equilíbrio.
Nossas mentes e ciências analíticas tendem a separar a parte do todo, isolar os fatores. É uma forma de organizar os pensamentos, hipóteses, experimentos. E funciona muito bem para várias coisas. Mas como interpretar a água, dinâmica por sua própria natureza, de forma independente? Aqui não apenas o ciclo da água importa, mas de tudo ao redor, especialmente o de carbono. E a interação da água com tudo que a rodeia, conosco inclusive e especialmente.
"Água fundamental" é um texto que fala das cidades e suas águas, e confesso que a catástrofe recente no Rio Grande do Sul me deixou receoso em publicá-lo. Falar de cidade e água justo agora poderia parecer insensível, mas é sempre necessário. Decidi assumir o risco e publicar a história destas águas mesmo assim. Elas não têm culpa de nada. Já alguns humanos, por outro lado…
Água fundamental
Thiago Ambrósio Lage
Nos velhos tempos, toda cidade nascia da água.
Este sistema circulatório essencial trazia e levava notícias, alimentos, fertilidade, descartes. Fosse rio, lago ou mar, era um ponto de ligação. Hoje, as cidades nem sempre vêm das águas, mas não vivem sem elas, o coração urbano. Bateria emocional, artérias e veias hidrológicas, um duplo antropomórfico líquido. Meio vibração, meio elemento.
Palmas nasceu dia 20 de maio de 1989, uma cidade planejada, não orgânica, gerada e nascida das assinaturas e decretos dos humanos para ser a nova capital de um novo estado. Não foi a primeira capital a nascer assim, e nem seria a última. Nestes casos, sem a relação espontânea entre corpo d'água e cidade, sua Água Fundamental seria escolhida por pares.
A poucos quilômetros de onde a pedra fundamental seria lançada logo mais por autoridades, tendo trabalhadores, fotógrafos e curiosos pioneiros como testemunhas, um grupo diverso — as Águas Fundamentais de cada capital — se reúne longe da vista dos homens. Vinte e sete vultos, revoltos, envoltos nas águas do encontro do Ribeirão Taquaruçu e do Rio Tocantins formam um círculo submerso. Tietê convalescendo, Capibaribe e Beberibe de mãos dadas com os braços cobertos por pulseiras. Num canto, imóveis, Pampulha e Paranoá. Amazonas e Negro numa conversa animada, acompanhada pelos risos de Madeira. Guaíba observando de longe. Guanabara se virando para que de Todos os Santos observasse as manchas iridescentes de óleo em sua pele. Vinte e sete vultos em tons de azul, verde, castanho, cor de lodo. As Águas Fundamentais estavam em assembleia.
— Bom, acho que podemos dispensar as formalidades, sinto que será o Ribeirão Taquaruçu mesmo, né? Todos concordam? — Guanabara se adianta, com a voz oscilando devagar, no mesmo ritmo em que os pequenos arcos-íris ondulavam em sua pele.
— Calma, temos que pensar no longo prazo. E tratar o momento com a devida seriedade. E até onde sei, eu presido nossos encontros, caso não se lembre. Não podemos fechar sem antes avaliar as possibilidades. Não podemos dispensar o Rio Tocantins assim. É preciso avaliar os prós e contras de cada opção — Paranoá soou mais alto, com sua voz firme silenciando o grupo.
— Não tem como comparar os dois, pense na proximidade com a cidade! Tem que ser o Taquaruçu! — de Todos os Santos chama a atenção para si e defende a sugestão de Guanabara.
Paranoá sorri, lembrando de seu nascimento. Como as Águas Fundamentais da primeira e segunda capitais se uniram contra elu há quase 40 anos... Rios, baías e lagos costumavam andar mais com os seus iguais, mas ali, se havia algo que as duas baías compartilhavam além da identidade, eram as glórias passadas.
— Cortar a cidade nunca foi um critério — disse Amazonas, cujo corpo tinha pelo menos o dobro da altura e largura de todos —, e para ser sincere, pode ser até pior. Não sou quadricentenárie como você, de Todos os Santos, mas já vi mais de uma Água Fundamental morrer. — Amazonas termina a sua fala voltade para Pampulha e Tietê.
A reunião se divide em grupos menores para que a discussão flua. Guaíba, de pele verde azulada e coberta de reflexos luminosos vermelhos, laranja e amarelos, conversa ora com rios, ora com lagos, mas prefere refletir sozinhe. Negro, com suas águas castanhas e quentes, puxa Amazonas e alguns outros rios para perto de si, todos evitando o olhar de Tietê. A água paulistana também tem uma cor incomum, mas ao contrário da manauara, seus tons escuros não vêm de folhas em decomposição e sim da poluição. Suas mãos e pés até trazem em si alguma espuma.
— Me tratam como se isso aqui fosse contagioso! — Tietê reclama alto o suficiente para que Amazonas ouça e é ignorade, enquanto se aproxima de Pampulha. — Mas e aí? Temos mesmo que decidir isso? Que diferença faz?
— Cidade planejada — a lagoa belo-horizontina responde enquanto coça os braços cobertos por uma fina camada verde de plantas aquáticas —, não nasceu da água, então cabe a nós escolhermos com cuidado.
— Que nem quando… — Tietê interrompe a frase. Quando foi a vez de Belo Horizonte, a Pampulha ainda nem existia.
— Sim, que nem quando Belo Horizonte foi fundada. Pode falar, não tem problema. Ninguém imaginava que fossem matar o Ribeirão Arrudas. Bom, mas acho que você de todo mundo é quem pode imaginar melhor. Acho que por isso há tanta apreensão. — Pampulha continua a coçar os braços, agora com mais vigor. — Estes aguapés estão me matando. Sua espuma não coça?
— Eu não tenho mais tanta sensibilidade nos membros.
— Desculpa, eu não queria ser rude, mas nossa, estar num rio é horrível. A gente devia ter feito a assembleia em Paranoá mesmo. Não sei como conseguem. Parece que a qualquer hora vou me desfazer nesta correnteza. E aí? Quem você acha que deve ser? Taquaruçu ou Tocantins?
— Bem, depois desse papo, acho que Tocantins, até pelo volume de águas.
Pouco a pouco os rumores diminuem e são substituídos apenas pelo som da água corrente. Paranoá toma a palavra:
— Caras Águas Fundamentais, acho que conseguimos discutir bem em paralelo. A cidade está para nascer e precisamos tomar uma decisão agora. De um lado, o Ribeirão Taquarçu, cortando a cidade, mas com um menor volume de águas. Do outro, o Rio Tocantins, margeando a cidade e inclusive carregando em si as águas do Taquaruçu. Alguém tem mais alguma colocação antes de votarmos?
— Nós temos — dizem em uma só voz Capibaribe e Beberibe, a dupla Água Fundamental, de mãos dadas e com braços e pernas cheios de pulseiras e braceletes até quase o ombro e a coxa, um para cada ponte —. Precisamos pensar também sobre a extensão, o Tocantins é imenso e isso pode tornar a ligação com a cidade mais fraca. — Amazonas, Branco, Negro e Madeira se agitam. Se antecipando à oposição, Capibaribe-Beberibe conclui seu argumento: — Não que seja um problema, temos exemplos de grandes rios aqui, especialmente no Norte, mas como é uma cidade nova e a ligação não é orgânica, isso nos causa apreensão.
Após alguns instantes, na ausência de réplicas ou outras colocações, Paranoá chama a votação, não sem antes lembrar que Capibaribe-Beberibe contam como apenas um votante. Formando o grande círculo, em ordem a partir de Paranoá e de mãos dadas, cada Água Fundamental dá seu voto. Por quatorze a doze, vence o Rio Tocantins.
De Todos os Santos começa a cantar, num vaivém marinho marcando o ritmo. A cada volta, outras vozes surgem, murmúrios, marulhos, corredeiras, cachoeiras. Nas pausas se ouve o silêncio dos lagos e das águas profundas. Camadas de som se unem, como gotas de chuva que atravessam a terra e se unem nos lençóis freáticos, como as nascentes, filetes d'água, juntas formando afluentes, rios. Notas fluem num coral subaquático, turbilhão de som sutil, música serena para ouvidos submersos da fauna local. A superfície do rio se agita tendo apenas o céu como testemunha. Do meio, surge uma figura alta, robusta como outras águas nortistas, formada de fios e sonhos dos que aqui estiveram, estão e ainda virão. Da vontade de sua família, nasce Tocantins.
A nova cidade tem sua Água Fundamental.
Fim
No mais, sem mais,
Abraços ictiomercuriais,
Thiago Ambrósio Lage (@thamblage)
Gotas de mercúrio
Sábado atrasado, no dia 11/05/24, rolou um aulão de escrita para arrecadar fundos para ajudar na reconstrução do RS que enfrenta uma grave catástrofe. Eu e mais 15 escritores, reunidos e capitaneados por
Vanessa Guedes da
falamos sobre uma infinidade de assuntos. Fico feliz em comunicar que foram arrecadados e doados mais de 32 mil reais, fruto do apoio de 961 pessoas, para as ações de apoio às vítimas das enchentes.As doações ainda são e serão necessárias. Não sabe pra onde ou pra quem doar? Deixo aqui as iniciativas apoiadas pelo aulão como sugestão:
Quer comprar o seu exemplar de meu livro Romantífica? [explico um pouco sobre ele aqui] Basta acessar o site da editora.
Mercúrio retrógrado
Já escrevi sobre Palmas no aniversário da cidade ano passado. Falei um pouco sobre como é morar aqui:
Obrigado pela leitura!
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adorei o Guaiba conversando com rios e lagos. eu fiquei meio surpresa de sorrir ao ler qualquer coisa relacionada a ele nesse momento, então obrigada. 🩷
"Mas a água não é apenas um recurso, ela não segue nossa vontade ou desejo. "
pois é.
Adorei, Thiago. Fiquei querendo mais desse universo. Senti uma pegada meio N.K. Jemisin em Nós Somos a Cidade, mas com os corpos d'água.