Óbito não é alta
Depois daquele depoimento na CPI ontem da advogada Bruna Morato, não tem como falar de outra coisa. O que estava planejado para hoje fica para a quinzena que vem, é pauta fria. E é impossível escrever pauta fria de cabeça quente.
Tive dois tipos de amigos ontem, os que estavam acompanhando a CPI e se enfureceram, se indignaram, se enojaram, e os que estão se alienando para proteger a própria saúde mental. O dilema de sermpre no Brasil de agora, com suas opções igualmente válidas. Mas para situar os que se alienaram: a advogada declarou que havia entre médicos da Prevent Senior a instrução de reduzirem a oxigenação de pacientes internados há mais de 10 ou 14 dias em algumas UTIs para que eles viessem a óbito e liberassem os leitos. Daí a frase “óbito também é alta”. Isso deu um nó na minha cabeça e na minha garganta. Para não ficar com informações de terceira mão, eis o vídeo ou uma reportagem.
A este procedimento tentaram chamar de cuidados paliativos (não são) e até eutanásia (também não são). São, foram homicídios. Poderia ter sido com qualquer um de nós e dos nossos, e foi com vários de nós e dos nossos. Isso é de uma gravidade e crueldade que desafiam qualquer descrição, me falta vocabulário.
Matemática
A aritmética assassina é simples: um óbito é igual a um leito desocupado. E este é um problema desde o começo da pandemia no Brasil: a dissociação entre números e a realidade representada por eles. Um óbito é uma vida perdida. Uma morte talvez evitável, se houvesse chance. Uma morte editável, entre laudos, obituários e prontuários fraudados.
Nem todo mundo da escritorsfera sabe, e alguns recebem a notícia com surpresa, mas eu “sou de exatas”. Engenheiro para ser mais preciso. Sempre digo que o segredo ao lidar com números é entender o que representam, mesmo o mais abstrato e irracional deles, até os imaginários vieram de algum lugar. Até os adimensionais (um beijo, número de Reynolds) têm seu significado.
Se te dou uma questão para calcular a área de um polígono, sabe que não tem como me dar uma resposta negativa. Se te passo um investimento que vai dobrar o seu saldo bancário, isso é uma excelente notícia para quem tem algum patrimônio, mas para um falido… o dobro de zero é zero. E de quase zero, idem. São conceitos simples, mas nem sempre de explicar. O que é impossível, o que é desprezível.
Se tem 200 milhões de grãos de arroz (cerca de 4 toneladas) e 600 mil se perdem (cerca de 12 kg), isso pode ser um inconveniente, mas ainda conseguirá alimentar multidões. Se tem 200 milhões de reais e perde 600 mil, ainda não precisará trabalhar pelo resto da vida. Se tem 200 milhões de brasileiros e 600 mil morrem de covid… não há como desprezar este número. O conceito vai além da proporção, e o no começo da pandemia era chocante ver pessoas fazendo projeções de 5 mil, 30 mil mortes e achando que seriam “perdas aceitáveis”, um número desprezível. No caso da vida, cada unidade traz em si histórias, amores, memórias e dores. Mas para os adeptos desta matemática da morte, o Real vale mais que o vital. E o óbito também é alta.
A idade avançada dos pacientes também é usada como argumento para minimizar o impacto de suas mortes. Será que o tempo para quem tem tão pouco não seria ainda mais valioso?
Outro clássico das aulas que envolvem cálculo é o famoso “errei só o sinal”. Sim, mas o que havia na frente do sinal? O que este número representava? Se o sinal é trocado, isso pode significar que a gravidade vai puxar para cima, o congelador vai ceder calor, o frio vai derreter o gelo, os opostos irão se repelir, o freio vai acelerar. Pode significar diminuir o oxigênio de quem já está sufocando.
Também falamos de curvas de crescimento, taxa de contágio, médias móveis, chance de imunização. Cada parâmetro associado com análises e comparações que fazem cada vez menos sentido. A contagem dos dias também estourou todas as previsões e memes do “quarentena dia 157” dos quais ríamos quando a contagem dos dias não passava de uma vintena. Todos estes números podem ser convertidos em algo bem concreto: ainda não, talvez ano que vem. A contagem de óbitos se aproxima de 600 mil e vivemos num grande depende, que depende também de nós não desprezarmos este número.
Abraços ictiomercuriais,
Thiago Ambrósio Lage (@thamblage)
P.S.
O Incêndio na Escrivaninha, podcast que apresento junto das escritoras Ana Rüsche e Vanessa Guedes teve um episódio muito sensível em que tratamos de Morte, com a participação de Laura Müller, médica especializada em cuidados paliativos. Nestes tempos em que as redes sociais são obituários, acho que vale à pena ouvir e refletir. (recomendei este mesmo episódio quinzena atrasada, eu sei, mas compensa, confia);
Publiquei uma ficção-relâmpago de forma independente na Amazon essa semana. O nome da história é “A Bruxa Dança”. Este texto foi selecionado para ser traduzido e publicado em inglês na edição #000 da Eita! Magazine, e agora está disponível na Amazon em sua versão original para o público lusófono;
Agradeço pelas contribuições na playlist da edição #003. Curti a dinâmica e devo trazer mais alguma playlist temática com as próximas edições. Se não sabe do que estou falando, é só ir lá no site e ver a edições anteriores da newsletter;
Juro tentar ser mais positivo quinzena que vem.
Obrigado pela leitura!
Se gostou da newsletter, pode querer conferir o que tenho produzido como escritor em meu site, e como podcaster no Incêndio na Escrivaninha, junto das escritoras Ana Rüsche e Vanessa Guedes. E leiam as obras da Plutão Livros! Ou pode querer apenas me seguir nas redes twitter, instagram e facebook e ficar por dentro de minhas bobagens e novidades.