"(...), tudo no tarô é a oscilação da ambiguidade."
Ana Rüsche, Ferozes Melancolias
Sou um ex-jovem místico. Resta saber se ex-jovem, ex-místico, ex-tudo, x-tudo ou x-men. Adolesci nos anos 90 com toda a sua onda milenarista, nova era, gnomos de durepoxi, cristais. Mônica Buonfiglio, Paulo Coelho, romances espíritas e tudo mais. Deste tempo, herdei de mim mesmo uma pequena biblioteca ocultista e um bom conhecimento de astrologia, tarô y otras cositas más. Não é à toa que o nome da newsletter é um trocadilho astrológico com um crime ambiental e calhou de nunca ter falado de nada disso aqui. Agora, despido de misticismo, saio do armário esotérico (ainda se usa essa palavra?) para falar de um assunto que permeia a minha escrita: o tarô.
Trazer este tema aqui é um plano antigo que agora desabrocha como consequência da mesa que fiz na Flip, na Casa Urutau, onde falei do tarô como catalisador criativo. Nem mesmo com a ajuda das cartas, o jovem Thiago foi capaz de prever que um dia falaria delas no maior evento literário do país. As cartas não mentem jamais, mas podem omitir.
Hoje tenho outra relação com o tarô, faz anos que deixei de acreditar em previsões, mas o fascínio pelos símbolos permaneceu. Falar delas em público, ou escrever aqui, me deixa com receio: meu ganha-pão é ensinar e pesquisar no campo das duras ciências naturais, teoricamente a antítese de tudo que é do místico, do sobrenatural. As cartas são para mim agora um conjunto de obras que representam arquétipos e conceitos que cabem a cada um desvendar. Me manter na superfície e abrir mão de explicações do que "há por trás", seja o inconsciente coletivo, sincronicidade, ligações espirituais, canalizações ou o que for, foi o que me virou a chave e trouxe a percepção das cartas como o que elas são: pedaços de papel pintado. Tenho minhas teorias, claro, mas é papo pra outra hora.
Quando comecei a escrever ficção, logo pensei em misturar um pouco de tudo. Pensar na astrologia para criar personagens foi o mais óbvio, já que os mapas astrais são sobretudo roteiros de personalidade (isso ainda vai virar edição da newsletter, a análise astrológica de uma obra famosa, me lembrem depois). Já o tarô, serviu para tudo: personagens, eventos, detalhes. Um manancial de ideias prontas para serem utilizadas, misturadas, descartadas, recicladas e o que mais desse na telha na alquimia das letras.
Na pandemia, no carnaval de 2021 para ser mais exato, um grupo da escrita resolveu se juntar (online, obviamente) para escrever. Propus fazermos um "Baile Místico", o apelido simpático que criei para uma mini oficina de tarô e escrita, em uma das tardes. Montei uma apresentação apressada e falei um pouco dos baralhos, das técnicas que estudei e desenvolvi para usá-lo como gerador de ideias. Fizemos alguns exercícios numa tarde como tantas outras no rosário pandêmico, e nos divertimos como foi possível.
Um tempo depois (meses? Anos? Essas unidades perderam o sentido nos anos da peste), aconteceu um desafio de se usar tarô como base de uma ficção-relâmpago no grupo da Escambanautica. Como ainda tinha a apresentação do Baile Místico, me ofereci para repeti-la. Em outra tarde, com outro grupo, as cartas trouxeram novas ideias e histórias.
Agora em maio,
organizou um aulão solidário para as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul. Me voluntariei novamente com o tarô, mas agora o desafio foi passar o recado numa fala de 15 minutos. Aqui as quase duas décadas em sala de aula e o poder de síntese foram meus aliados e consegui focar no essencial sendo breve e mesmo assim informativo e provocativo.Semana atrasada, na Flip, transformei essa fala numa mesa de uma hora na Casa Urutau e foi maravilhoso. A casa pequena, como todas de Paraty, estava cheia de velhos e novos amigos e acolhedora. Algumas pessoas se emocionaram e vieram conversar comigo depois da mesa. Uma escritora me mostrou duas de suas poesias sobre as cartas. Na confusão da memória do “carnaval literário”, o nome dela me escapa, mas lembro dos arcanos (4 de ouros e 8 de espadas) e da sensação evocada pelos versos. Entendi melhor o poder de ver o baralho de um jeito mais despojado. Preparando a minha fala, pensei demais no ato de dessacralizar a escrita e as cartas. No contato ao vivo e a cores, entre escritoras e um outro escritor, isso virou uma certeza e um propósito. O baralho é também um jogo, não quero levá-lo tanto a sério.
Chegando em casa, revendo as fotos da viagem, duas me chamaram a atenção, bem na energia de para quem quer acreditar, tudo é sinal:
O três de copas, as três taças, são um brinde e celebração, é a alegria de estar com amigos, de almoçar drinques numa tarde quente em Paraty. Num grupo de três amigos, nunca há empate ou impasse, qualquer dilema se resolve de forma rápida. Não é à toa que vemos tanta ficção protagonizada por trios.
Já o sete de copas, no desenho clássico de Pâmela Smith, é a carta dos sonhos e desenhos, de riquezas e realizações fantásticas ainda no campo da imaginação. E como da carta, o brinde foi feito de imagens diversas. E não é disso que são feitos os escritores da literatura especulativa?
Decidi botar em prática meu plano antigo. Como disse na mesa, as cartas me autorizam, já que tiro delas o significado que quiser. Falarei delas aqui não apenas como instrumento de escrita: sairei pela tangente e falarei sobre tarô e narrativas, tarô e criatividade. E se nossas vidas são histórias, por que não falar também de tarô, seus símbolos e a vida? Também quero mostrar alguns baralhos e observar como diferentes artistas expressaram sua visão sobre os mesmos temas. Digo que não coleciono baralhos, mas no último censo aqui eu contei mais de 40 entre minhas gavetas e estantes. Também pensando na lógica das redes sociais (e sim, não se iluda, aqui na plataforma de newsletters também estamos em uma), garanto pauta para pelo menos 78 edições da newsletter. Ou menos, se resolver fazer duas ou três cartas por texto. A parte restrita à escrita pode ficar para alguma oficina online no futuro, outra ideia que tem me atiçado.
Mas antes, me conta você, qual a sua relação com as cartas? Gosta ou desgosta de alguma em especial? Bora embarcar nessa comigo?
No mais, sem mais,
Abraços ictiomercuriais,
Thiago Ambrósio Lage (@thamblage)
Gotas de mercúrio
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Meu conto Seis Estrelas, publicado na Escambanautica, é finalista na categoria Narrativa Curta de Fantasia no prêmio Odisseia de Literatura Fantástica 2024! No conto acompanhamos os erros de Míriam, uma motorista-fantasma de aplicativo que roda nas noites de Belo Horizonte. Caso tenha curiosidade de ler, seja para torcer a favor ou contra, a revista está disponível na Amazon!
Tem conto novo na área! Eu contribuí com um conto para a Depois: uma coletânea de futuros, que saiu pelo selo SAIFERS em parceria com a ZEIT. Cada autoria foi desafiada a escrever um conto baseado em alguma pesquisa da ZEIT, e eu fiquei responsável por abordar as imagens geradas por IA. Meu conto se chama A arte e a vida imitam uma à outra e vice-versa.
Outros planetas, outros metais, outros signos, outros animais
A citação que abre a newsletter foi tirada da primeira crônica (ou ensaio, a gosto da freguesia) do tocante Ferozes Melancolias, livro mais recente de Ana Rüsche. O li logo que saiu e me provocou uma série de emoções e reflexões daquele jeito que Ana consegue fazer com maestria unindo temas relevantes e o domínio de linguagem poética mesmo na prosa de não-ficção. Preciso falar mais sobre o livro, mas ainda estou pensando no formato, se posto aqui, no insta, se faço um reels… mas fica a dica: leiam, e com especial atenção o primeiro ensaio que trata justo de tarô!
A
tem um episódio muito massa do Bobagens Imperdíveis no qual conta a história de Pâmela Smith, desenhista responsável pelo tarô Rider-Waite-Smith, que veio a ser a base e inspiração da maior parte dos baralhos que usamos hoje. Pâmela foi (e é) invisibilizada, e conhecer sua história é uma forma de trazê-la para os merecidos holofotes.Ainda vou falar de obras que envolvem o tarô diretamente, mas se quiserem um esquenta, indico O Castelo dos Destinos Cruzados, de Ítalo Calvino. Na obra, estranhos se encontram ao redor de uma mesa com um baralho, e usam as cartas para contarem suas histórias uns para os outros.
Voltando aos podcasts, faz um tempo que participei do A História Além da História, do Thiago Lee, falando sobre O Dia do Curinga, de Jostein Gaarder, um dos livros favoritos da vida cuja trama se desenrola junto em torno de um baralho (in)comum.
Um pedido de desculpas
No último ano e pouco falhei miseravelmente no contato com leitores e colegas aqui: não respondi a comentários ou e-mails, não agradeci marcações. Isso veio de um bloqueio com a newsletter e acabou o alimentando ainda mais. Parte disso por um monte de coisa que rolou do lado de cá, parte disso pelo caráter cada vez mais “rede social” da plataforma aqui. Vou tentar resgatar e responder aos e-mails com calma, mas os comentários acho que seria considerado estranho responder a coisas de meses, anos atrás. Juro tentar melhorar daqui para a frente, podem puxar minhas orelhas!
Obrigado pela leitura!
Se gostou da newsletter, pode querer conferir o que tenho produzido como escritor em meu site, ou pode querer apenas me seguir nas redes instagram e facebook e ficar por dentro de minhas bobagens e novidades.
aguardando tua leitura de tarô para moi! hehehe
amo-te
Que legal essa edição. Engraçado que ontem peguei meus baralhos para dar uma olhada neles depois de tanto tempo sem ve-los.
E hoje me deparo com essa edição.
Um beijo.