XIV - A Temperança (Carta fora do baralho 1/78)
O início de uma série sobre cartas e narrativas
Mini-disclaimer: Eu não sou tarólogo, este não é um curso de tarô. É apenas uma série sobre percepções sobre as cartas e ficção/música. Depois eu explico melhor.
A Temperança é uma de minhas cartas favoritas. Sim, temos cartas favoritas, algumas mais clichê e outras menos. Já vi ela ser chamada de Alquimia ou de A Arte, um apelido da alquimia. Antes de observar o desenho penso no título da carta.
O sufixo -ança me traz a ideia de algo recorrente, repetição, atos contínuos. Penso em andança, lembrança, bonança, mudança, esperança, aliança, … talvez criança tenha outro significado para mim agora. Antes deste -ança, aqui vem temperar. Do latim, temperare já dá uma chave: misturar corretamente, moderar, regular. De cara penso em comida, nos memes do Masterchet, “faltou tompero". Um dos temperos que usamos é cravo, não cravo bem temperado de Bach, aqui o instrumento musical. E se um instrumento musical pode ser temperado, também se tempera vidro e aço.
No alimento, o tempero é acrescentar elementos que vão trazer, destacar ou suavizar um ou outro gosto ou sabor. Limão no prato pra trazer acidez, uma pitada de açúcar para suavizar. Ervas e especiarias. Mas sempre há um acréscimo de elementos. Na música, o temperamento das escalas acontece bem ali onde a física e a matemática se intrometem na afinação e na música: para tornar regulares intervalos e manter uma coerência maior, se opta por diluir um erro ,que seria grande isolado, a níveis aceitáveis espalhados pela escala. Uma tensão maior é dividida em tensões menores, acrescentadas a cada nota. No caso do vidro, é igual, mas diferente: ao se solidificar, ele tem pontos internos de tensão, já que o esfriamento da massa de vidro fundido não acontece por igual. Estes pontos podem ser pontos de fragilidade no vidro acabado, no qual um pequeno choque pode causar sua quebra. Para evitar isso, o vidro é aquecido e resfriado rapidamente no processo de têmpera, sendo gerada uma tensão uniforme em sua superfície, gerando um aumento de até cinco vezes na resistência à quebra, e ao quebrar dá origem a pequenos cacos menos cortantes (alô, duralex!). O aço pode ser temperado num processo parecido, se tornando mais duro e mais resistente ao desgaste, mas mais quebradiço (o que pode ser contornado com outro processo posterior).
Nos significados da carta se fala muito em equilíbrio, harmonia. Essas palavras podem dar a falsa ideia de passividade, neutralidade. Temperar é um processo ativo, que requer acréscimo de elementos. É harmonia entre elementos concretos, é doce e ácido, é calor e frio. A Temperança é equilíbrio dinâmico. Ela não é feita de OU, ela é feita de E.
A pessoa (anjo?) verte a água de uma copa à outra. A imagem é sempre estática, mas dela se infere movimento, o líquido no ar não deixa negar. Se o equilíbrio existe, ele é dinâmico. Na falta de filtro, fervemos a água para torná-la segura ao consumo. Após fervida, é praxe passar ela algumas vezes entre dois copos/panelas/canecas exatamente como a figura da imagem faz. Isso serve para esfriar a água (calor e frio novamente) e reincorporar o ar perdido durante a fervura (acréscimo, suavização). O movimento de mistura, visto como algo alquímico, pode ser bem corriqueiro. A figura alada habita o ar, mas está na terra. Na terra, tem apenas um pé, o outro está imerso na água. Ela é do ar E da terra, está na terra E na água. Calor e frio não se anulam, eles se sucedem. Alto e baixo não se anulam, são movimento. Assim como a terra e água. Eles podem não se sobrepor no tempo ou no espaço, mas na cena geral o tempero vem de sua dupla presença.
O comportamento do elétron, como onda e partícula, me remete a isso. Penso também nos dois lados de uma moeda, ou no famoso koan “uma mão aplaude”. Não tem como observar os dois lados da moeda de uma vez só, mas ela só existe na interação deles. Girar a moeda faz os dois lados surgirem ao mesmo tempo em nossa vista, porém para isso é preciso movimento.
Pra mim, A Temperança está num grupo de cartas que fala de dualidades, e isso me jogou numa linha de pensamento ainda tênue, mas que devo elaborar de maneira mais firme durante esta série. Na ordem dos números, tenho passado a enxergar o um como um elemento dual. Toda presença traz em si a ausência, e em nossa era de sistemas binários, o zero vale tanto quanto o um. Dessa forma, a presença e ausência se tornam indissociáveis, mesmo se uma excluir a possibilidade da outra. Talvez a unidade real seja o zero, pois na ausência não existe este debate. Mas se pensar nas infinitas possibilidades trazidas pelo vazio… Papo pra outra hora.
A carta no mundo
Na ficção tive um pouco de dificuldade em encontrar quem ou o que traria A Temperança, e só escrevendo aqui tive o insight e lembrei de O Médico e o Monstro. Não é o médico ou o monstro. Na narrativa, o drama se desenrola justamente na falta de equilíbrio entre Dr. Jekyll e Mr. Hyde. A coexistência é impossível, e a falta de reconhecimento da complementaridade entre os dois pólos culmina em tragédia. Pros dias atuais, o filme A Substância ecoa o mesmo tema, com Elizabeth e Sue como pólos complementares, e sua ruína vindo primeiro da imposição de um pólo sobre o outro, e depois de uma tentativa de fusão mal sucedida. Ao telefone, Elizabeth ouviu e não entendeu a advertência “vocês são uma só”. Nas duas obras, o que traz as formas alternativas dos protagonistas para a realidade são justo poções, preparados alquímicos.
Na linha de “personagens que se transformam mas são sempre a mesma pessoa” dá pra ir em toda a linha de licantropos, e não raro as tensões se resolvem ao aceitarem o equilíbrio dinâmico entre sua natureza animalesca e sua natureza humana. O arco de Fiona em Shrek traz alguns destes elementos, na sua aceitação de sua natureza ogra sem negar sua natureza humana, mas aqui vejo mais outros temas, de adaptação ao status quo. Fica pra outra carta.
Vindo ao Brasil, cito o estimado A Luneta Mágica, no qual um homem, Simplício, com severos problemas de visão consegue uma lente corretiva maravilhosa. Mas a lente, mágica (alquímica?), traz apenas a visão do mal. Depois de algumas trapalhadas, a lente é substituída por outra, agora apenas com visão do bem, o que não torna o protagonista menos infeliz. A história fecha com a lente do bom senso. A lente que permite ver o bem e o mal.
Por representar o equilíbrio e ser uma carta de sutilezas, A Temperança surge mais quando este equilíbrio é rompido ou ameaçado e daí surge o conflito que move as histórias. A carta se revela em sua ausência.
Por onde tem visto A Temperança por aí?
No mais, sem mais,
Abraços ictiomercuriais,
Thiago Ambrósio Lage (@thamblage)
PS.: Essa série é um plano antigo, faz tempo que tinha sorteado para começar com A Temperança e talvez por isso eu tenha fritado demais na carta e jogado muita coisa aqui. O plano é seguir todo o baralho e ir adaptando o formato no caminho, seguindo a lógica de newsletter. Vamos ver onde vai dar, e vou ali pegar a próxima carta porque a coisa começou!
Gotas de mercúrio
Tem conto meu novo na área! Hexaoniroflexágono é uma ficção científica meio doida que calhou de ser selecionada e publicada na Suprassuma #3! É isso mesmo, posso dizer por aí que fui publicado na Suma / Companhia das Letras! E você pode ser este conto (e outros contos incríveis) DE GRAÇA! E nem precisa de kindle pra ler, pode ler no app do celular. Basta ir lá na Amazon baixar! (pelo que sei tá disponível nas outras plataformas de ebook também).
Outros planetas, outros metais, outros signos, outros animais
O
fez um relato lindo de , realmente foi um fim de semana maravilhoso, pra renovar o gás e escrever mais!
Obrigado pela leitura!
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A temperança é uma das minhas cartas favoritas também 🫶
Esperei tanto por essa série!!! Que bom que ela está vindo ao mundo!