Temos nosso próprio tempo
Um breve relato da jornada tardia de um escritor gay orgulhoso
Antes, algumas palavras:
Hoje é o dia internacional do orgulho LGBTQIAPN+. Pensei em escrever algo sobre o assunto, mas o tenso de escrever por causa de efemérides é ir me repetindo a cada girada do ano. Olhei aqui e ano passado escrevi sobre isso. E mesmo tendo o dia do orgulho acaba que sou gay todo dia.
Esses dias vi um reels onde Ícaro Kadoshi fala sobre o estresse de minorias em homens gays. Sobre como ter que disfarçar a sua identidade é uma descarga de estressores durante boa parte da vida, especialmente durante nosso desenvolvimento. Fiz uma busca rápida aqui e cheguei a encontrar um artigo falando desse estresse na população LGB.
Aí pensei em por que não compartilhar este texto que integrou o projeto de conclusão de curso de Paula Cruciol? O texto fala um pouco sobre minha trajetória na escrita, mas ao relê-lo essa semana, vejo com isso se entrelaça com a forma como lido com minha identidade e sexualidade. E sorri com alguma tristeza ao lembrar do medo que eu tinha de contar pra minha própria psicóloga que eu era gay. É um jeito de lembrar também que ainda temos muita luta para conquistar e manter nossos direitos integralmente, mas também houve avanços nesses 24 anos que separam os dois Thiagos na linha do tempo.
“Você devia escrever.” Ouvi isso da minha psicóloga aos 20 anos, na virada do milênio. Ela falava sobre a minha busca por interlocutores, porém na hora só curti a ideia de forma distante e nem rendi muito assunto. Estava com a cabeça cheia de ansiedades e o peito cheio de angústias, e com medo de dividir meu maior segredo com aquela desconhecida. Corta para 23 anos depois e hoje até uso bandeira de arco íris no nick em redes sociais. E escrevo.
A terapia durou pouco tempo, acho que apenas o suficiente para apagar aquele incêndio e para eu perceber que antes de falar qualquer coisa até mesmo com uma profissional eu precisava contar meu segredo para mim mesmo. Já os conselhos e sugestões, alguns eu segui logo, como ler Nietzsche (não entendi nada, mas finjo que curti) e outros, demorei. Demorei seis anos para começar a viajar e quinze para começar a escrever. Às vezes me pergunto por quê.
Vejo escritores que relatam uma pulsão irresistível para a escrita desde a infância. “Escrevo desde que me entendo por gente.” Sinto um pouco de inveja e acho que não me entendo por gente até hoje, pelo menos não todo dia. Talvez, se eu tivesse começado antes, teria a técnica mais elaborada, saberia melhor o que estou fazendo. Mas aí eu não seria eu. Na infância, eu era muito mais receptor que emissor. Observar o mundo — e as pessoas — era o que me movia. Não é à toa que virei cientista. Eu escrevia, claro, mas apenas o que me era pedido na escola. Fazia quiet quitting antes de ser modinha! Talvez eu achasse que já havia histórias demais no mundo ou o mundo me convenceu que o que eu tinha para falar não valeria à pena ser dito. Sem contar que quanto mais eu me expusesse, mais baixaria a guarda para que usassem meu segredo contra mim. Melhor esperar. E esperei.
Enquanto esperava, fiz a vida em outro campo. Estudei o que pude e precisei de ciência de alimentos, produção de bebidas, análise sensorial, metabolismo de leveduras, biotecnologia industrial, e depois disso, aos 35 anos, já sem segredo e com a vida profissional e financeira resolvidas, segui o conselho da antiga psicóloga. Participei de um desafio de escrever um romance de 50 mil palavras durante o mês de novembro, o famoso NaNoWriMo (tenho um texto massa sobre isso, talvez publique aqui depois).
Sabia o que estava fazendo? Não. E tem como aprender a andar de bicicleta sem pedalar?
Consegui terminar o livro. Terminar o que depois entendi ser apenas a primeira versão. O que eu jurei que seria meu produto final era só a matéria-prima, o esboço grosseiro do que o livro poderia vir a ser um dia. Repeti o feito nos dois novembros seguintes. Escrever quase que automaticamente, preencher páginas por preencher com um esquema difuso de um romance já não eram desafios. Como escritor eu desejava mais que escrever: desejava ser lido. É assim que a obra se completa.
No ano seguinte eu já estava mais sabido e estudado do que eram as atividades ao redor da escrita. E entendi que ser escritor é tanto “só escrever” quanto ser professor é “só dar aulas”. Refiz redes sociais abandonadas, me dediquei enviar textos para editais (o jeito mais seguro que imaginei que seria possível publicar sem networking) e também fiz o que pude para fazer parte da comunidade. A sensação de chegar atrasado era gritante.
Todos pareciam ser velhos amigos e ter seus grupos e eu… era eu. Mas da vida eu já tinha aprendido o que era um despertar tardio e que a festa é grande e sempre tem mais gente chegando.
Mensagem a mensagem, evento a evento, interação em rede social a interação em rede social, eu fui conhecendo pessoas incríveis e encontrando minha turma.
E no burburinho das redes abundam conselhos categóricos sobre o que deveria ou não deveria ser escrito. Tanta gente parece ter tanta certeza e tantas certezas paradoxais. No meio dessa desorientação, encontrei abrigo em estudos: cursos, oficinas, leituras, trocas com outros escritores, desde um grupo de amigos, agora antigos, que fiz lá nos desafios de 2015, 2016 e 2017, a recém chegados se não na escrita, na minha vida. Assim fui aprendendo que atrás de cada mandamento de 280 caracteres havia nuances e espaço para eu me encontrar. O “escreva sobre o que você sabe” passou a complementar e não a opor o “escreva sobre o que você quer saber”. O “não escreva fantasia medievalóide” passou a ser “escreva a sua fantasia medievalóide e não mais uma cópia malfeita da mais famosa”.
As aprovações em editais e aceites em coletâneas vieram, algumas encaradas com incredulidade. Rejeições também vieram e talvez aqui a idade tenha jogado a meu favor: já recebi nãos bem mais duros antes de escrever. Sei que o que não agrada a uma banca pode ter sucesso em outra, o que de fato aconteceu com mais de um de meus contos. Também por meio de uma seleção aberta, consegui publicar meu primeiro livro solo. E com o tempo, também recebi alguns convites. É um mercado em que não se pode ter tanta pressa e em que as coisas puxam umas às outras.
Hoje entendo melhor a minha primeira psicóloga, porque hoje escrevo. O conselho foi para expressar meu lado “rabugento engraçado”, como ela dizia, e jogar minhas sacadas no papel. Só que hoje percebo que escrever é muito mais que isso: escrever começa muito antes e continua muito depois de registrar as palavras. Escrever permeia minhas percepções do mundo e de mim mesmo e me permite capturá-las num texto como este. Um texto que serve de ponte entre eu e você, o interlocutor pelo qual esperei por mais de 15 anos.
No mais, sem mais,
Abraços ictiomercuriais,
Thiago Ambrósio Lage (@thamblage)
Gotas de mercúrio
Quer comprar o seu exemplar de meu livro Romantífica? [explico um pouco sobre ele aqui] Basta acessar o site da editora.
Outros planetas, outros metais, outros signos, outros animais
Hoje não tem indicação. Me indiquem vocês newsletters do povo do vale, é sempre bom conhecer mais coloridos!
Mercúrio retrógrado
Ano passado falei do dia internacional do orgulho, e pensei muito em revisitar e expandir a analogia do armário com a roupa nova do rei este ano. Mas por hora apenas linko o texto aqui, talvez seja um papo pra retomar oura hora, ou ano que vem.
Obrigado pela leitura!
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é muito bom ler sobre trajetórias que começaram "tarde", porque é algo super possível, mas que nas urgências dos nossos tempos, não fixa na cabeça. Obrigada por esse relato.
A sensação de "deveria ter começado mais cedo" às vezes ainda aparece pra me assombrar, mas é isso: aos pouquinhos encontrando grupos de amigos, nichos, espaços seguros.