Se tem guisado pra janta, é fantasia. Se tem pílulas, é ficção científica.
Mercúrio em Peixes #014
No começo de setembro tive a oportunidade de participar de algumas mesas da Worldcon e trocar uma ideia com pessoas de todo canto na maior convenção de ficção científica do planeta. Nessa troca pude organizar alguns pensamentos e confrontá-los com novos pontos de vista, o que vai acabar sendo assunto em algumas edições da Mercúrio em Peixes. E o tema de hoje é… comida!
Uma das mesas de que participei foi "The Culinary Delights of Speculative Fiction" e creio que além de ser escritor, a formação em engenharia de alimentos também me credenciou para estar ali. Pensar em como o alimento é abordado na literatura de ficção científica e fantasia é pegar o elemento mais trivial de nossa existência e trazer ao centro de um debate que envolve mudanças muitas vezes drásticas em nosso senso de realidade. O que vamos comer no futuro? Como seria a alimentação (e o metabolismo) de outras espécies inteligentes? Criaturas fantásticas dariam boas carnes de caça? Qual a relação entre fermentação e magia?
Refletir sobre isso é refletir sobre o papel do alimento em qualquer ficção. Sua ausência diminui a suspensão da descrença (esse povo nunca come!) e sua presença é uma ferramenta maravilhosa para expor os personagens, sua cultura e seu mundo. Refeições são coletivas? Individuais? Os alimentos são partilhados? São marcadores que diferenciam classes sociais? São vistos como parte da cultura ou apenas como combustível?
No Brasil, uma das narrativas com que quase todos temos contato são as telenovelas. A cena da madame que só toma um suco e sai correndo para a clínica e deixa a mesa digna de um café da manhã de hotel intocada para a sua empregada recolher é praticamente um meme. E quanta coisa não se tira dessa cena? Há também os diálogos (e brigas) durante as refeições. Me atrevo a expadir essa geografia do Brasil para a latinidade ao me lembrar da cena hilária do filme Encanto onde Dolores não resiste a uma fofoca enquanto come com a família. Mas novelas e fofoca serão o tema de uma edição futura: voltemos à mesa.
Na conversa houve o questionamento de dois estereótipos: o onipresente guisado (ou cozido) das tavernas mediavaloides de mundos de fantasia, e a comida futurista em pílulas e tubos nutrindo astronautas. Mas o que parecem ser soluções cômodas para autores cansados talvez tenha camadas mais profundas.
O guisado é quente, molhado, untuoso, ambundante. É uma "comida forte" e ao mesmo tempo delicada, com nutrientes liberados pelo cozimento lento e a potência que vem da sua diluição no caldo acompanhado de um bom pedaço de pão. Ele é versátil, é feito com o que se tem disponível, algo importante em tempos de precariedade na conservação dos alimentos e de seu aproveitamento integral. Ele é feito para render, o "colocar mais água no feijão" pode muito bem ser colocar mais água ou vegetais num cozido. Acima de tudo, o guisado é um prato compartilhado. Todo prato ou tigela vem do mesmo caldeirão. Em sua fumaça ele traz esta acolhida, e o senso de coletividade. Ou talvez o medo de ser envenenado.
A pílula é o oposto. É fria, seca, escassa, concentrada. Confiável. Previsível. São porções individuais. É a versão humana do combustível de foguete. A medida certa para manter o indivíduo funcionando por tantas horas. Aqui tudo que se pensa sobre sazonalidade é esquecido, essas pílulas podem muito bem ser sintéticas e durarem por tempo indefinido. Não raro na ficção é acrescentado algum prato especial ocasional para compensar a aridez desta alimentação minimamente funcional.
Não é difícil transpor essa dicotomia a nossa realidade alimentar. Passamos cada vez mais a uma medicalização da alimentação. Tem se popularizado se referir a um bife, um ovo ou a uma porção de grão de bico como "a proteína". Carboidratos ganharam apelido, carbo, e uma fama ruim que não faz jus à realidade. O jejum por opção, intermitente de acordo com um cronograma rígido, está lado a lado com o jejum involuntário da fome e da insegurança alimentar, este sem prazo ou cronograma, apenas com urgência para que seja quebrado em definitivo. Ao mesmo tempo que fit e saudável virou sobrenome de marcas e resturantes, outros adotam o sobrenome afetivo. Mas somos feitos de contradições inclusive em nossos microcosmos de uma refeição em que um estrogonofe fit pode ser rebatido com um brigadeiro de confeitaria afetiva. Tudo isso empurrado por um refrigerante dietético que mais tarde se equilibra com uma garrafa de kombuchá. É muito detox, muito tox, e se na mesa e nos cardápios essas tendências entram em confronto, nos campos e economias temos a batalha entre sistemas produtivos, a monocultura, transgenia, uso indiscrimado de agrotóxicos frente à frente com os orgânicos, as agriculturas familiar e florestal. Talvez a grande crítica ao guisado e à pílula venha não deles serem o que são, mas da monotonia destes mundos que não trazem a coexistência de mais de um sistema ou tendência alimentar.
Existiram pílulas no mundo medievaloide, assim como podem existir guisados em naves espaciais. Porque mais que um prato que se comia antigamente e um prato que se comeria no futuro, eles são pratos que se comem em momentos diferentes da jornada. O guisado é a comida da chegada, a pílula, da estrada.
Não é difícil subverter estes esterótipos ao pensar dessa forma. As pílulas da estrada fantástica terão outra forma: carne e frutas secas, nozes, queijos duros, lembas, farinha e rapadura, paçoca salgada ou um bom feijão tropeiro. No espaço, alimentos desidratados podem ser reconstituídos para replicar praticamente qualquer refeição terrena. Inclusive o calor residual de algumas máquinas pode ser utilizado para o cozimento lento. Não há limites para a criatividade humana (ou de qualquer outra espécie fictícia, eu imagino) na hora de se alimentar. Diferentes alimentos e formas de preparo podem dar origem a mais cores para se pintar os personagens e o mundo.
Outro ponto a se observar é quem é responsável pela alimentação. Uma vez, num papo num grupo de leitura, algumas colegas estavam elogiando uma obra especialmente em como sempre eram citadas as comidas. Um dos comentários que surgiu é que por isso se notava que era uma escritora. Na hora aquilo me incomodou um pouco porque… eu sou homem e nem por isso deixo de prestar atenção à alimentação, afinal de contas moro sozinho faz séculos. Consegui segurar o meu impulso de "nem todo homem" e depois, refletindo, entendi que ali não se falava de mim, mas de toda uma estrutura social em que na maioria esmagadora e absoluta dos casos, a alimentação é responsabilidade feminina. Há homens, e não são poucos, que passam a vida inteira apenas esperando a comida pronta na mesa. Aí hoje escrevendo eu lembrei daquele dia… e penso que talvez esta onipresença do cozido indistinto ou das pílulas/ração espacial venha do fato de termos muito mais vozes masculinas que femininas na literatura.
E não à toa, gostaria de fechar indicando uma escritora que tratou o alimento de forma fenomenal em sua obra. A duologia Semente da Terra de Octavia Butler tem semente e terra no próprio nome, e o cultivo, obtenção, oferta e preparo de alimento são forças motrizes gigantes na história. Há uma cena em específico que me tocou muito na relação entre alimento, origem e afeto. Não sei como é a política de spoilers em newsletters ou quantos anos depois do lançamento de um livro a lei anti-spoiler prescreve, mas fica muito aqui a indicação. E este sou eu disfarçando a falta de conclusão me escondendo atrás de Octavia Butler, mas vai, lê o livro e me conta depois o que achou!
Antes de me despedir, um varal de recomendaões que me lembrei enquanto estava revisando a news:
Eu tenho um conto numa Palmas futurista que gira em torno de uma bebida e um amor perdido. Seu nome é Malus retituta e ele está na edição convidados da Revista Maçã do Amor;
A Eita! Magazine, revista brasileira de literatura especulativa em inlgês agora é bilíngue, e em sua edição #002 ela teve o tema “comida". Os contos estão… suculentos!
No mais, é isso! Abraços ictiomercuriais,
Thiago Ambrósio Lage (@thamblage)
PS.:
O Texto e o Tempo: Dias 5 e 6 de novembro vai rolar um EVENTO SOBRE NEWSLETTERS. Vamos discutir newsletters brasileiras em um final de semana, com mesas redondas e workshops. Serão abordados diferentes aspectos desse novo movimento, com destaque para a reflexão e a escrita. O evento será online e aqui você pode encontrar mais informações sobre O Texto e o Tempo.
Na minha edição sobre vinil e fatiar o tempo eu comentei sobre o método pomodoro, e vendo o comentário de Ana Rüsche eu pensei: porque não fazer playlists com a duração de uns 25 minutos? O plano é fazer pelo menos uma por edição da Mercúrio em Peixes, mas hoje fiz logo duas: Guisado e Pílula. Espero que curtam!
Obrigado pela leitura!
Se gostou da newsletter, pode querer conferir o que tenho produzido como escritor em meu site, e como podcaster no Incêndio na Escrivaninha, junto das escritoras Ana Rüsche e Vanessa Guedes. E leiam as obras da Plutão Livros! Ou pode querer apenas me seguir nas redes twitter, instagram e facebook e ficar por dentro de minhas bobagens e novidades.
Se tem guisado pra janta, é fantasia. Se tem pílulas, é ficção científica.
Adorei ler esse texto! Trouxe muitas reflexões aqui 💛
Gostei muito de seus comentários... Realmente, a ideia da comida partilhada (e que rende mais) pode ter levado a essa preferência por guisados e ensopados. Eu falo um pouco de comida em alguns textos meus, atualmente meus aventureiros estão na Índia se deliciando com arroz aromático e suco de manga. que um deles tem o prazer de comer direto das pontas dos dedos da namorada. Mas tenho homens cozinheiros em todos os meus universos. Lísias cozinha muito bem. Kieran, na estrada, faz um bom espetinho.