Um dia desses aí pra trás estava rolando uma trend no twitter com uma simpática charge de um armário com a porta destruída e sua parte interior nas cores do orgulho LGBTQIA+. Nas primeiras postagens as pessoas só colocavam há quanto tempo haviam saído do armário. Mas logo ela tomou proporção e várias pessoas passaram a postar relatos de como saíram do armário.
Infelizmente, grande parte dos relatos são muito parecidos entre si, especialmente na angústia que se revelar para a família poderia trazer. E na concretização dessas angústias, muitas vezes associada a uma independência apressada (um jeito lindo de falar "ser expulso de casa" ou ter a convivência tão desgastada que é como uma expulsão velada). Eu preferi não expor como aconteceu comigo e acabei dando uma resposta meio pela tangente: sair de que armário? Para quem?
Na real, a minha resposta foi um pouco mais elaborada dentro do que permitem os 280 caracteres:
Depende. Acho que as pessoas fazem a conta mais pra família, né? Aí são 20 anos. Mas na prática a gente sai do armário o tempo todo em todo canto em que tentam fazer de conta que os LGBTQIAP+ não existem (ou que não somos LGBTQIAP+).
É isso, estamos o tempo todo saindo do armário. Seja pra um novo colega no trabalho, pra amigos que você não via faz anos, ex-colegas dos tempos de colégio ou faculdade, alguém que você acabou de conhecer. E também 24h por dia em qualquer lugar onde nossa existência seja ignorada e nos façamos presentes.
Mas pensar nisso tudo me puxou outra pergunta bem mais difícil de responder: de quando foi que entramos no armário. Se entramos ou se somos jogados nele. Quando foi que percebemos que o mundo é um lugar menos seguro para pessoas como nós e tivemos vontade, ou melhor: necessidade, de nos esconder? Quando foi que descobrimos que tinha algo de diferente conosco que nos jogaria nesse período nebuloso, num armário construído ao nosso redor com uma porta só de saída?
Cada experiência com o armário é única, mas sempre com algo em comum. Muitas vezes se "conta" a uma criança que ela é de alguma forma diferente, estranha, inadequada, "errada" e por questões que ela nem entende ainda. Se conta por meio de um bullying, uma "brincadeira", um comentário preocupado com/dos os pais. Fala baixo. Não vira a mão. Menina não anda de skate. Feche as pernas. Não cruze as pernas. Vá jogar bola. Vou te matricular no balé pra ficar mais feminina. Balé nem pensar, vai fazer karatê. Tudo na esperança que de alguma forma aquilo possa ser "consertado". E aí vamos aprendendo a tentar esconder. E venhamos e convenhamos, sem muito sucesso, né? Porque o nosso "erro" não é um detalhe, uma vírgula: é nossa identidade, permeia todo o texto.
Já cansei de ver armário de vidro bem transparente, com um inquilino tranquilo e alheio à própria exposição. E por educação, ninguém grita que o rei está nu. Exceto da vez que uma criança me perguntou se eu fazia balé para o constrangimento da mãe apavorada que tentou consertar falando que minha postura era muito boa. Rimos.
E no sair o tempo todo dos armários, uns que nem sabia que eu estava e fui colocado sem consentimento, passei por um processo tardio mas meio tenso: tirar minha ficção do armário. Estou passando, na real.
Quando comecei a escrever, já aos 35 anos, eu levei um bom tempo para entender que poderiam existir personagens LGBTQIA+ em minhas histórias. Tinha lido pouco ou nada com personagens assim, e quase sempre eles próprios com um pé no armário. Uma frase explícita no meio de um romance e que mesmo assim dava margem a outras interpretações ou algo explícito mas em papéis muito bem definidos (como ser o alívio cômico). O armário exige sutileza, e estar fora dele requer glitter. Mas de cena em cena, de conto em conto, fui povoando minhas histórias com pessoas mais diversas que aquelas das ficções com as quais cresci.
Para mim estava tudo muito bem resolvido, estava publicando em revistas de equipe/público mais progressista, saí numa coletânea exclusivamente de autoria de pessoas LGBTQIA+. Mas esse ano publiquei meu livro. Ao divulgar a obra, não costumo frisar que a maioria dos personagens ali dentro faz parte da comunidade. Já doei alguns exemplares para bibliotecas. E um dia bateu aquele velho frio na barriga: e se quando abrirem o livro e virem homem-com-homem, mulher-com-mulher, um pouco de linguagem neutra… o que vai acontecer? Instintivamente temi — e temo — que minha obra sofra a violência que eu e os meus já sofremos. Que seja retirada das estantes, virada ao contrário, apagada, silenciada, excluída. Restrita.
Lembrei de outros momentos da vida. Dos testes e concursos onde meu medo de "dar muita pinta" na frente da banca era maior que o medo de falhar no conhecimento técnico ou performance em aula. Na roleta-russa do Brasil contemporâneo de sempre que surge um contato novo ter que esperar e perceber se é uma pessoa que está à vontade para ser intolerante ou se é alguém pra quem posso baixar minha guarda e ser transparente.
Mas ainda citando outra obra, na verdade uma música que amo, sair do armário é o "Point of no return". A catraca de saída só gira para um lado. E mesmo que um retorno fosse possível, não quero mais: cresci muito aqui fora, não me cabe mais. E estar aqui fora é importante não mais apenas por mim, mas por quem vem por aí e ainda tem medo.
No mais, sem mais,
Abraços ictiomercuriais,
Thiago Ambrósio Lage (@thamblage)
Drops
Romantífica (vulgo meu livro mais recente) está no mundo! No livro trago contos que exploram a interface entre ficção científica, romance e relacionamentos (explico um pouco aqui). Quer comprar o seu exemplar? Basta me mandar um e-mail, mensagem, DM ou visitar meu site e seguir as instruções que mando um para você! Ou se preferir, pode comprar no site da editora.
Seguindo a tradição, mais uma playlist pomodórica com mais ou menos 25 minutos. Dessa vez, uma microsseleção de favoritas da Madonna (um clichê de quem foi criança viada anos anos 80, mas é isso aí). Parti de uma playlist de uma hora e meia e fui cortando até chegar nessa. Espero que curtam!
Obrigado pela leitura!
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Que texto, Thiago. Sensacional! Me vi em muitas dessas cenas. Obrigado ♥️
Está linda a edição! E “Romantífica” também ❤️ Obrigada por ser esse homem corajoso e inspirador.