Ouvi uma piada uma vez: Um homem vai ao médico, diz que está deprimido. Diz que a vida parece dura e cruel. Conta que se sente só num mundo ameaçador onde o que se anuncia é vago e incerto. O médico diz: "O tratamento é simples. O grande palhaço Pagliacci está na cidade, assista ao espetáculo. Isso deve animá-lo." O homem se desfaz em lágrimas. E diz: "Mas, doutor... Eu sou o Pagliacci."
Watchmen, Alan Moore
Fim de semana prolongado da 29ª Parada do Orgulho de SP, chego na cidade quarta à noite e vou logo pra um bar daqueles que a gente não conta por aí qual é. Encontro com um amigo, ele me cumprimenta com um abraço, um sorriso e um deboche:
— Veio pra piracema gay?
Rimos juntos. Esse virou meu bordão pelos próximos dias. A parada hoje atualizou a sigla, é LGBTQIAPN+, mas o fato de ser uma migração anual de gays brasileiros (e de outros cantos mais distantes, o mutual mexicano com quem tomei café da manhã e o chileno que [CENSURADO] que o digam) a SP permanece. Outro amigo comentou “nossa, é tipo o Gagacabana” e sim, sempre foi, e ele nunca percebeu porque é de SP e não tinha vivido a experiência inversa antes da Gaga.
Quando eu era bem mais novo, e a contagem da parada de SP ainda estava na primeira dezena, ela era algo mítico entre os gays de BH. Era aquele dia no qual se fazia de tudo impossível de fazer na própria cidade, a BH ainda provinciana, grande só no tamanho e com o apelido de Roça Grande. E eu, quietinho no armário, só sonhava em um dia participar dessa festa. E dessa luta.
Mais de 20 anos depois, já perdi as contas de quantas paradas fui e em quantas cidades. Mentira, se parar pra pensar com papel caneta eu me lembro de cada uma. Nas primeiras, em Palmas, ainda com receio de ser visto lá, de passar na TV, mas ao mesmo tempo, cheio de coragem pela necessidade de ser mais uma pessoa ali na contagem de público. Aquela demonstração de força que individualmente pode valer pouco, mas pesa demais no coletivo. Em Recife, uma cidade onde eu era anônimo, curtindo com mais liberdade. E depois em vários outros cantos até isso deixar de importar, até poder estar ali ser mais importante pelos que não podem que por mim mesmo.
Esses dias vi passar uma postagem no bluesky de uma pessoa que conheceu um casal que dirigiu cinco horas para ir à parada de Nova Iorque. Quando perguntados sobre este sacrifício, responderam ser o único dia do ano no qual poderiam ser eles mesmos sem medo. O mundo mudou, em vários ambientes demonstrações públicas de afeto são mais aceitas, porém isso não é em todo lugar. E quando falamos de outras gerações, o medo ainda permanece. Sorrio ao escrever isso por entender que hoje sou “outras gerações”. Num reels de Rita von Hunty ela fala algo sobre sermos a primeira geração de LGBTs que vai envelhecer em massa. Eu vendo e concordando… e ela segue… nós, nascidos no fim dos anos 80, começo dos anos 90. E a ficha cai que sou da geração anterior, um dos “sobreviventes”, estou 10 anos adiantado para fazer parte deste “nós”. Quando nasci, ser homossexual ainda era considerado doença pela OMS e não existia parada em SP ou Recife ou BH. Em Palmas, muito menos, já que nem Palmas existia.

E esta diferença geracional pesa muito. Pessoas mais novas nascem num mundo com mais direitos, que talvez levem como garantias. Observando a situação nos EUA, Polônia, Hungria, Rússia e afins, vemos que direitos podem ser revogados da noite para o dia. E da Hungria veio uma das melhores imagens do pride month pra mim: a parada do orgulho de Budapeste com cerca de 200 mil pessoas nas ruas após a proibição por parte do governo. A gente curte uma festa, mas as paradas, marchas, passeatas de pride, orgulho, LGBTQIAP+, seja lá como são chamadas, são luta. Em Budapeste, a marcha nunca esteve tão cheia desde os anos 90. Isso me leva a uma outra questão: luta-se por direitos a serem conquistados, luta-se novamente por eles quando são ameaçados. Precisamos esperar que sejam retirados para irmos às ruas?
A parada de SP estava mais vazia este ano, era o comentário comum, e foi minha percepção. A de Palmas, a mesma coisa. No aspecto político, em SP eu só vi uma personalidade política em palco/trio na feirinha da diversidade e na parada. Uma pessoa que diz não curtir o papo de “de direita ou de esquerda", mas também a única que vi lutar pelo não fechamento dos bares da Vieira de Carvalho. Minha sensação é de vivermos uma situação inversa à da Hungria, de termos uma população que crê (falsamente) na segurança dos próprios direitos.
Não se iludam, quando a coisa aperta, a posição que algumas vidas valem menos que outras ressurge. Isso me lembra o filme Circle (2015): ali há pessoas dispostas em círculo e a cada rodada uma é eliminada (morta mesmo) por votação. Eliminar o outro te garante mais uma rodada. Agora imagine o perfil dos primeiros eliminados... Está longe de ser o melhor filme do mundo, mas de uma forma bizarra, o recomendo. A pressão é real, porém a premissa é falsa: na vida real, vivemos numa sociedade de escassez num mundo de recursos abundantes. Não seria necessário “eliminar” ninguém se tivéssemos uma forma mais justa de partilhar a vida, o mundo. Caso não tenha paciência, basta lembrar do auge do covid e do HIV. Doenças fatais, pandemias que uns minimizaram por atingirem mais a uns grupos que outros. Aqui posso citar outra obra, esta sim fenomenal e recomendada sem reservas, o Carga Viva (falarei dele com mais profundidade em outra ocasião), romance mais recente de Ana Rüsche. No livro, estes dois momentos históricos se unem em narrativas paralelas ligadas pela poesia, pelo amor e pela pulsão de vida.
Pulsão de vida na festa na avenida, de mãos dadas com a pulsão de morte. Aqui só falo — e só posso falar — de minha letra na sigla colorida. Quantas vezes já não ouvi em tom de brincadeira que “gays não tem senso de autopreservação"? Geralmente este comentário acompanha algum relato de comportamento de risco. Encontros de aplicativos, chem sex, cruising, demonstrações públicas de afeto, a lista abunda, e vai muito além de sexo sem preservativo, podendo incluir até ir na padaria da esquina com uma bandana de arco-íris. Não os culpo, não me culpo: quando se é alvo, viver é sempre um risco. E crescer num mundo que te diz o tempo todo: “sua vida vale menos” vai contaminar o seu (meu, nosso) sub/inconsciente?
Construindo redes. Lutando. Entendendo que ninguém precisa ser eliminado do círculo. Mas aceito outras respostas.
É, Gal Costa, é preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte. Mas também não precisamos desejá-la ou facilitar pra ela. Nem mesmo de forma inconsciente.
Resistamos. Ou melhor, we will survive!
“Ooh, inside, my heart is breaking
My makeup may be flaking
But my smile still stays on”
The Show Must Go On, Queen
No mais, sem mais,
Abraços ictiomercuriais,
Thiago Ambrósio Lage (@thamblage)
Gotas de mercúrio
Tem conto meu novo na área! Hexaoniroflexágono é uma ficção científica meio doida que calhou de ser selecionada e publicada na Suprassuma #3! É isso mesmo, posso dizer por aí que fui publicado na Suma / Companhia das Letras! E você pode ser este conto (e outros contos incríveis) DE GRAÇA! E nem precisa de kindle pra ler, pode ler no app do celular. Basta ir lá na Amazon baixar! (pelo que sei tá disponível nas outras plataformas de ebook também).
A edição de 2025 de O Texto & O Tempo está rolando no exato moment oem que estou apertando o “play” desta edição. Um fim de semana sobre newsletters cheio de gente incrível e papos saborosíssimos. Como as mesas ficarão gravadas e disponíveis um tempinho, acho que ainda vale a pena se inscrever.
Obrigado pela leitura!
Se gostou da newsletter, pode querer conferir o que tenho produzido como escritor em meu site, ou pode querer apenas me seguir no instagram e ficar por dentro de minhas bobagens e novidades.
Vida longa e próspera a tod@s!! Isso inclui minha filha. :)
"Pulsão de vida na festa na avenida, de mãos dadas com a pulsão de morte." Isso. baita texto, amigo