No feriado de Corpus Christi, resgatei meu lado tenor e estive na cidade onde fiz faculdade no Encontro de 45 anos do Coral da UFV. Uma celebração com os coralistas atuais e os antigos que puderam comparecer, com momentos de descontração e música, claro. O evento foi incrível, conheci um monte de gente massa, tive notícias tristes, destravei muitas memórias… e isso deve render mais algumas edições da Mercúrio em Peixes, mas hoje quero falar de algumas palavras que pude trocar com Rogério Moreira Campos, regente do coral durante 27 anos, dois dos quais eu participei como cantor.
Nesse papo eu me lembrei de três coisas que aprendi com ele que transcenderam a música e as apresentações e que levo para a vida, seja profissional, seja pessoal. Engraçado que são ensinamentos dos quais sempre me recordo e me pego repetindo algumas palavras dele, mas que nunca tinha sistematizado dessa forma. E agora divido isso com vocês, já me desculpando previamente com o Rogério caso minha memória tenha distorcido uma coisa ou outra, afinal de contas lá se vão mais de 20 anos dos meus tempos de ensaio da Casa 2.
Tem que entrar muito bem e sair muito bem
A primeira música é o impacto inicial, é o que prepara a audiência para a apresentação. Acho o papo de "a primeira impressão é a que fica" bem desgastado e não creio que seja totalmente verdadeiro, mas a primeira impressão influencia muito a segunda, a terceira, a quarta…
Na literatura muito se insiste na força da primeira página, do primeiro parágrafo, da primeira frase. É necessário pegar o leitor pelo pescoço e puxar para dentro da história. Na música não é diferente. E em nenhum outro projeto ou trabalho do qual participei.
A primeira aula de uma disciplina, a abertura de um podcast, a primeira palestra de um congresso, o primeiro parágrafo de uma newsletter, o primeiro conto de um livro. Isso é sempre um convite, uma sedução, uma transição. É um portal que atravessam graças a você e ele tem que ser instigante e maravilhoso. E é nele também que se estabelece uma relação de confiança onde você é o guia. Num conto de fadas, este portal é o Era uma vez, e a partir desse ponto estamos num outro mundo.
No ensaio para a apresentação do evento com coralistas e ex-coralistas, Rogério começou com um exercício de relaxamento como sempre fazia. Ali também senti esse poder, esse limite entre o "mundo lá fora" e o espaço (mental, temporal) do ensaio.
E falando de transição, há também o impacto do fim, de devolver quem quer que seja ao mundo lá fora. Aqui é a hora de causar outro impacto, o da última impressão, aquela que será carregada e lembrada depois. O que cada um leva para casa ou, hoje em dia, repercute nas redes sociais. Na literatura, nas formas curtas, muitas vezes isso é a reviravolta final. Num conto de fadas é o felizes para sempre. Numa novela, os casamentos, nascimentos, prisões e mortes trágicas. É a música que ainda vai reverberar nos ouvidos de quem está a caminho de casa.
Nas outras esferas da vida, a preocupação é a mesma: o último parágrafo numa edição da newsletter, um convidado de peso para encerrar uma semana acadêmica, uma última aula que faça um bom fechamento. Um último acorde que ainda paire no ar mesmo com o silêncio dos cantores.
Cante como se cantasse para uma plateia de músicos
Ou, como gosto de pensar, "não conte com a ignorância alheia". Você nunca sabe com quem está lidando, para quem está falando, especialmente nas redes sociais. Por mais que domine um assunto, sempre pode estar lado a lado ou frente a frente com um especialista tão ou mais proficiente que você.
Seja criterioso com seu trabalho: se tem seus padrões de qualidade para si próprio, porque não vai segui-los ao entregar o trabalho para outra pessoa? Posso parecer incoerente falando isso depois de duas edições recentes falando para se diminuir um pouco a auto-cobrança, mas creio que as falas se complementam.
Aqui não é uma ode ao perfeccionismo, mas sim a dar o seu melhor, o melhor dentro de suas condições. Aqui falo sobre servir ao próximo o que serviria para você mesmo. Inclusive reconhecer as próprias limitações é essencial para se dar seu melhor. Lá na apresentação cantamos com poucos ensaios, dado o tempo reduzido entre os ex-coralistas chegarem e o evento. A nossa técnica pode não ter sido a melhor do mundo, mas foi a melhor dentro do que pudemos fazer com dois ensaios e tomados pela emoção dos reencontros e da nostalgia.
Escreva como se escrevesse para escritores. Ensine como se ensinasse a professores.
Não existe plateia pequena
Juro que ia me segurar para não contar causos do coral, mas para esse item preciso de um para ilustrar.
Foi numa apresentação depois da missa em alguma cidade pequena perto de Viçosa. A gente ia e voltava de ônibus no mesmo dia, era chegar, cantar, lanchar (geralmente uns lanches bem bons oferecidos pelas senhorinhas da cidade) e voltar para casa. Mas dessa vez a missa foi acabando, foi rolando a paz de Cristo e a galera foi indo embora em massa. Ficaram pouquíssimas pessoas para nos ouvir cantar. Poucas mesmo, de sei lá, não dar os dedos de duas mãos (posso estar exagerando, a memória prega peças).
Claro que ficamos decepcionados. No Campus éramos quase pop stars. Quando cantávamos em aberturas de eventos muita gente que nem ia para o evento dava um jeito de ir só para nos ouvir. E ali… não. Mas cantamos muito bem como sempre. E depois em conversas veio outro ensinamento. Não tem plateia pequena: quem estava ali é porque queria nos ouvir de verdade.
No trabalho já tive turmas com (bem) poucos alunos. Escrevendo então, nem se fala. Muitas vezes temos o alcance bem reduzido. Essa newsletter não nasceu com centenas de inscritos. Mas nada disso é justificativa para eu não entregar o melhor que sei e posso fazer. Cada texto, cada aula, tudo tem que ser feito com o mesmo carinho seja para um ou para um milhão de pessoas. Aqui penso muito na qualidade da audiência.
Em tempos de economia da atenção e notificações ininterruptas no celular, um tempo dedicado a mim, investido em mim, deve ser valorizado sempre. Se você tirou 10 minutos do seu dia para ler esta newsletter, é com você que tenho que falar e não com os outros 7 bilhões de pessoas que não estão aqui (ou 8. E pensar que quando eu estava no colégio eram 5!). Em sala de aula, devo ensinar aos alunos presentes, e não aos ausentes. Sempre lembro de um antigo professor meu que dava longos sermões sobre a importância da pontualidade para os alunos pontuais enquanto quem deveria ouvir não tinha chegado à aula ainda, hehehe.
E seguindo bem as outras duas dicas, quem sabe as pessoas que levantaram e foram embora não ouçam falar bem de seu trabalho e resolvam ficar na próxima oportunidade?
Naquele dia, rapidinho, pude falar de forma resumida isso tudo com Rogério. Também comentei que ele impactou a vida de muita, muita gente nos seus anos à frente do coral de formas que talvez ele nem imagine. E talvez ali, na noite fria de Viçosa, confraternizando na saudosa Casa 2, eu tenha aprendido mais uma ou duas lições. Lições sobre o impacto que temos na vida uns dos outros e sobre o poder da música, ou melhor, da arte, de unir as pessoas e suas paixões.
No mais, sem mais,
Abraços ictiomercuriais,
Thiago Ambrósio Lage (@thamblage)
Drops
Romantífica (vulgo meu livro mais recente) está no mundo! No livro trago contos que exploram a interface entre ficção científica, romance e relacionamentos (explico um pouco aqui). Quer comprar o seu exemplar? Basta me mandar um e-mail, mensagem, DM ou visitar meu site e seguir as instruções que mando um para você! Ou se preferir, pode comprar no site da editora.
A apresentação do encontro foi transmitida via youtube e gravada, e se tiver curiosidade de ver, eis o link. Os ex coralistas entraram nas quatro últimas músicas e se vir um tenor desesperado com um olho no regente e outro na partitura apavorado de medo de errar a letra das músicas… sou eu mesmo. Duas músicas do final e toda a primeira parte do show foram regidas por Ciro Tabet, o atual responsável pelo Coral. As duas últimas tiveram a regência do Rogério.
Quebrando a tradição, nada de playlist, mas sim três links de músicas que eu amava (e amo) cantar em coral. Este CD foi gravado sob a regência do Rogério, mas eu já não estava mais no coro. Espero que curtam!
Obrigado pela leitura!
Se gostou da newsletter, pode querer conferir o que tenho produzido como escritor em meu site, e como podcaster no Incêndio na Escrivaninha, junto das escritoras Ana Rüsche e Vanessa Guedes. Ou pode querer apenas me seguir nas redes twitter, instagram e facebook e ficar por dentro de minhas bobagens e novidades.
O que aprendi cantando que levei pra vida
Obrigado, Tiago, por suas palavras naquela conversa que tivemos na confraternização dos 45 anos do Coral da UFV na casa 2 e que você reproduziu aqui no texto. O convívio com vocês nestes anos todos de trabalho na UFV com os corais e o Conjunto de Sopros também me fez crescer muito como pessoa. Sou muito grato por tudo o que pude fazer e receber nessa mão dupla que tivemos.
Adorei o texto! Fui transportado para o ano de 1980, quando entrei para este coral. Maravilhoso e inesquecível! Quando ingressei no grupo, não tinha noção do quão relevante seria para minha vida. Grande abraço ao nosso querido Rogerio!