Não coloque metas de ano novo
Ou coloque quantas quiser em qualquer época, é sempre ano novo em algum lugar
Fim de ano é complicado. Corrido. Maluco. Confuso. Puxado.
Já perdi as contas de em quantas conversas ou e-mails usei estas expressões. E justo no fim do ano vamos planejando o ano seguinte e nos colocando metas e resoluções. Esse ano comentei com uma amiga que em dezembro parece que estamos todos meio bêbados, e que talvez a virada não seja o melhor momento para tomar grandes decisões ou começar projetos.
Esta alteração do humor geral no fim do ano com pitadas de depressão, angústia e ansiedade tem até nome: dezembrite. Motivos não faltam, desde os irresistíveis "balanços" (então é Natal, o que você fez?) aos inevitáveis encontros com a família e velhos conhecidos, reativando gatilhos enferrujados, mas potentes. E aí chegam as metas, talvez como resposta a tanta insatisfação e autocrítica. Se não curti o que fiz, farei diferente, farei outra coisa, farei mais. Quando me virem ano que vem, estarei diferente.
Bobagem.
Para fugir do desconforto, criamos mais (auto)cobranças, numa reação autocatalítica de ansiedade que gera ansiedade, que gera ansiedade, que gera ansiedade, etc. O fato de estarmos todos imersos na mesma insanidade coletiva normaliza estes comportamentos. E com muito radicalismo, tanto em atitudes grandiosas na primeira semana do ano, quanto na frustração em qualquer falha e a sensação que "agora, só no ano que vem".
Logo antes de sair para a festa de ano novo, embaralhei o tarô e tirei uma carta, meio que de brincadeira. Voltei a estudar tarô para um projeto de escrita e tenho retomado contato com meus baralhos. A ideia me pareceu divertida. A carta foi o quatro de ouros.
Sem entrar no grande debate do significado divinatório da carta, reparo apenas no desenho. Uma figura nem simpática nem antipática, agarrada às suas quatro moedas. Na hora, postei um story no instagram e brinquei que não gostei da carta e que o baralho tem mais 77. No dia primeiro, acordei pensando nela e em metas. Em como muitas delas se relacionam com o querer mais e melhor, com ambições, acúmulos e otimizações. E em como às vezes já estamos com os braços, cabeça e pés ocupados. Será que não seria caso de inverter um pouco estas metas e pensar no que se pode deixar ir?
Toda escolha traz em si uma renúncia, aprendi cedo ao ter que decorar o poema "Ou isto ou aquilo" de Cecília Meireles para recitar na escola, não me lembro se com sete ou dez anos. Correr atrás disto é se afastar daquilo. Se abro os braços pra pegar algo, uma taça, um bastão ou uma espada, a moeda cai. O mesmo acontece se movo a cabeça ou os pés. Ao me agarrar às moedas, são elas que me prendem.
É uma tentação enveredar numa positividade nem sei se tóxica, mas rasa, de deixar ir os velhos hábitos nocivos. Mas não, às vezes temos que abrir mão de coisas boas também, para dar espaço a coisas melhores ou mais necessárias. Ou este abrir mão nem precisa ser intencional, já que estar vivo é estar sujeito a perdas, como foi destacado numa Anacronista no mês passado.
Aniversários compartilham um pouco dessa angústia de fim de ano, pelo menos para mim. Imagino que a crença no inferno astral vem um pouco disso (que considero meio infundada: faria mais sentido se fosse o mês anterior ao trânsito do Sol em seus ascendente, mas isso é neura de quem estudou mais astrologia que devia nos tempos de jovem místico). O aniversário é um ano novo pessoal, com seu balanço geral e alguns planos e resoluções, mas sem a euforia generalizada. E acho que este deslocamento pode ser usado a meu favor ou a nosso favor com as resoluções. Vem comigo!
O ano novo é arbitrário, e do mesmo jeito que um aniversário pode ser seu ano novo pessoal, você pode buscar — ou criar — outros anos novos. Inclusive em datas isentas de carga emocional. O ano é uma roda (ok, uma elipse), e como marcar o ponto onde o percurso da Terra ao redor do Sol começa ou termina? Qualquer ponto é válido. Tanto que diferentes culturas têm ou tiveram diferentes calendários e diferentes datas de virada de ano. O exemplo mais óbvio e próximo são os chineses e seu calendário lunar, cujo ano novo em 2024 cai em 10 de fevereiro, o início do ano do dragão de madeira. Há também os anos novos islâmico, judeu e persa em outras datas. E já que citei astrologia, o ano novo astrológico também é uma data interessante, acontecendo no equinócio da primavera no hemisfério norte, quando o Sol entra no signo de Áries.
Qualquer uma destas datas é tão válida quanto a primeira semana de janeiro para se começar um projeto ou mudança, e sem a carga emocional de um aniversário ou a pressão coletiva do fim de dezembro. E por que não usar uma — ou várias — delas em nossas resoluções? E ainda com mais uma vantagem: teremos mais janelas de oportunidade caso as resoluções falhem em datas anteriores. Tentou começar a academia em janeiro mas não se empolgou? Fevereiro está logo aí com o ano novo chinês, assim como março com o ano novo astrológico, e assim por diante. É sempre tempo de começar e mudar.
Se for para fazer bem a mim ou a nós, que todo dia seja o início de um novo ano.
Feliz ano novo!
No mais, sem mais,
Abraços ictiomercuriais,
Thiago Ambrósio Lage (@thamblage)
Gotas de mercúrio
Romantífica (vulgo meu livro mais recente) está no mundo faz quase um ano! No livro trago contos que exploram a interface entre ficção científica, romance e relacionamentos (explico um pouco aqui). Quer comprar o seu exemplar? Basta acessar o site da editora.
A
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Mercúrio retrógrado
Aqui trago alguma edição antiga da newsletter que se relacione à edição atual. Nesta edição passada, falei um pouco de produtividade e de como se fatia o tempo, achei pertinente.
Obrigado pela leitura!
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Eu, como não gosto mais de ser um bêbado de fim de ano, gosto muito de usar esse tempo de recesso e recolhimento para repensar o ano. Aprendi a planejar, na marra.
Sobre o 4 de ouros, engraçado, 4 é um número completo e fechado, mas que adianta ter tudo e estar preso ao que se tem ?
ainda bem que a dezembrite teve hora para acabar, né haha (contém ironia)
esse 4 de ouros é esse cara aí com tudo nas mãos. te vejo muito nesse carta.
feliz 2024 para nos! seguimos.