É carnaval! Ou melhor, é carnewsval: um bloco carnavalesco digital, textual, disponível nas melhores casas do ramo. E eu vim devidamente fantasiado de sapo, quem sabe assim não ganho uns beijos?
Essa edição especial da Mercúrio em Peixes faz parte de um desafio proposto num grupo de newsletters.
Dia desses pensei em reciclar antigas postagens do finado blog aqui, porque não? Não sei qual a pegada de carbono de um texto perdido nos drives de 2010, mas sempre bom ser sustentável. Escavei um, “de girinos e sapos” ou algum outro título pretensioso assim. E aproveitando da praticidade do metaverso imaginário, me apresento aqui paramentado de verde, viscosidade e vergonha de republicar um texto fraco mas com uma ideia boa: a metamorfose em movimento. Então bora de reescrita.
Associamos muito borboletas a transformações, naquele maroto protocolo de comer, engordar, crescer, se isolar, romper a casca, sair e arrasar. Me lembra os números de mágicos e suas caixas misteriosas nas quais assistentes entram amarradas como salames e saem agitando suas capas. Só que no caso dos insetos temos o mistério da vida numa caixa-preta biológica (nem deve ser tão caixa-preta, mas me deixa ter essa licença poética? É carnaval!). Eu mesmo, em meus momentos antissociais, entro pro casulo-casa e deixo o tempo agir. Ou gostaria de deixar. Porque "a vida é trem-bala, parceiro", e quem se dá ao luxo de parar o mundo e ter seus dias de crisálida-spa? Sou girino-sapo, e não lagarta-borboleta.
Girinos também passam por uma metamorfose, com final bem menos glamouroso. Ao passo que a lagarta-borboleta passa de uma forma feia, desengonçada e até cômica a uma forma bela, etérea, o girino-sapo passa de uma forma asquerosa a outra tão asquerosa quanto ou mais. Enquanto a lagarta mastiga lentamente suas folhas esperando seus dias de princesa, o girino nada atrás de seu alimento, e luta para não se tornar alimento até mesmo de outros girinos. Enquanto a lagarta-borboleta dorme seu soninho de beleza transformadora, o girino-sapo nada, foge, nada, come, nada, foge, pula, come, ops! Pula? Sim... ele não tem tempo de curtir a mudança. Só vai vivendo e sobrevivendo, e quando para pra pensar, já se livrou do mundo aquático e se tornou um imponente e gosmento anfíbio. Nada muito bonito, mas com certeza uma máquina de sobreviver bem mais eficaz que o girino.
A gente se acostuma tanto a trocar o pneu do carro ainda em movimento que nem percebe. Salve acadêmicos do “sem tempo, irmão"! Salve Heráclito! Alô comunidade do rio que não é atravessado duas vezes!
Enquanto juntava pixels e lantejoulas para fazer minha fantasia, lembrei da Metamorfose de Kafka. De como Gregor virou um bicho do nada, bem na vibe do "quando eu cheguei aqui tava assim"... nada muito metamorfótico. Curioso que sou, fui correr atrás do título original e seu significado: Verwandlung, uma transformação mais imediata, relacionada a contos de fada. Faz sentido. Também li uma crítica a esta tradução (no espanhol no caso), no sentido que a transformação infeliz de Gregor em nada se parece com as metamorfoses de tempos clássicos. Sendo assim, não estranhe a ausência de Kafka aqui no meu esquenta, ele que ache a sua própria turma!
O texto antigo tinha sido escrito em 2010 ou 2011, e a vida ainda reservava umas surpresas para mim, para nós. Naquele dia em que me vi como girino-sapo, jamais imaginei que, ao entrar na década seguinte, eu ficaria 2 anos emcrisalidado. E ainda seria grato por isso. Grato por ter um emprego que me permitiu atuar conectado de minha crisálida ao mundo enquanto me protegia da peste. E me fechei, como me fechei. Me fechei e me transformei.
O tecido verde brilhante que cobre meu corpo se rompeu aqui e ali. Nas frestas, aparecem coisas que nem sei mas que sempre estiveram lá. Foi como derreter e me ressolidificar. Como ser feito de lego e ter algumas peças serem trocadas de lugar. Se no movimento de girino-sapo a metamorfose passa despercebida, é cenário, na câmara de espelhos da reclusão, a hipervigilância faz com que cada pequena mudança tenha a força de um sismo. Todo o movimento é interno, intenso, tenso e nada terno. A língua agora divide espaço com uma probóscide (nunca imaginei que um dia fosse usar esta palavra!). As pernas aumentam um par delicado demais para meu peso, e do limo das costas surgem asas também brilhantes, mas secas, pulvurulentas, inúteis para o vôo, mas chega de utilidade, tem mudanças que só chegam e são assim mesmo (ok Gregor, agora você vem pro bloco).
Seja em movimento, seja em repouso. Não há repouso em movimentos internos.
Não sou girinossapo ou lagartoleta, sou uma metamorfose ambulante, que agora ambulo fora. E dentro. De mim.
No mais, sem mais.
Abraços ictioanurolepidopteromercuriais,
Thiago Ambrósio Lage (@thamblage)
PS.:
Comprou Romantífica na pré-venda? Verifique sua caixa de e-mails, a Benfeitoria está confirmando os endereços para envio dos livros. Já já chegam!
Eu tenho um conto de carnaval! Ele saiu na quinta edição da revista A Taverna, que está à venda na Amazon. Se curte carnaval e/ou fantasmas e/ou piratas, acho que vai curtir!
Edição passada eu falei de solarpunk e citei o nome de Renam Bernardo, e no mesmo dia ele divulgou uma excelente notícia: publicará uma coletânea na gringa de solarpunk e climate ficiton. Bem que alguma editora brasileira podia fortalecer e publicar aqui também, né?
Assim como os melhores blocos de carnaval, as playlists pomodóricas começaram como brincadeira e viraram tradição. Me diverti montando essa entre sapos, rãs e borboletas. Espero que curtam!
Obrigado pela leitura!
Se gostou da newsletter, pode querer conferir o que tenho produzido como escritor em meu site, e como podcaster no Incêndio na Escrivaninha, junto das escritoras Ana Rüsche e Vanessa Guedes. Ou pode querer apenas me seguir nas redes twitter, instagram e facebook e ficar por dentro de minhas bobagens e novidades.
"... asas também brilhantes, mas secas, pulvurulentas, inúteis para o vôo, mas chega de utilidade, tem mudanças que só chegam e são assim mesmo".
Amei demais seu texto, traga mais reciclagens, é gostoso ver o seu antigo conversando com esse você que passou por tantos formatos de mudanças 🥰
Fiquei esperando alguém beijar o sapo e ele virar um principe, kkkk. Que texto gostoso. Parabéns.
Abraço, garoto