Ou o ovo e a galinha. Prescritivo ou descritivo. A priori ou a posteriori.
Nobel
Este foi o pensamento recorrente das últimas semanas, mais especificamente logo após gravar o episódio #38 Meu Nobel favorito no Incêndio na Escrivaninha. O episódio veio na onda do mais novo laureado com o Nobel de literatura: Abdulrazak Gurnah. Confesso sem o menor constrangimento que não o conhecia. Mas uma coisa que tenho conhecido cada vez mais é o nosso mercado literário e o burburinho pós-Nobel de “Quem será que vai trazer a obra do laureado para o Brasil?”.
E nisso surge o questionamento: o Nobel valida o cânon ou o cria? Ganhar um Nobel acaba sendo sinônimo de ter seu trabalho traduzido para vários idiomas e lido por todo o canto. Mesmo que até a véspera muitos dos novos e ávidos fãs desconheçam os títulos, e muito menos a autoria deles. Mas se o autor for um ilustre desconhecido, como chega a ganhar um Nobel? Difícil saber quem veio antes, se o ovo ou a galinha, ou a fama ou a medalha.
Gramática
Um fenômeno parecido (pelo menos na minha cabeça) é a utilização de pronomes neutros na língua portuguesa, ou da linguagem neutra como um todo. Defensores da gramática prescritiva querem confinar a língua a expressar apenas o que está previsto em sua norma culta. Mas temos a gramática descritiva, que registra e valida as novas formas da língua viva.
Mas depois que passam a ser descritas e a compor a norma… as novas formas não passam ao status quo e a compor um tipo de prescrição? De onde vem a gramática prescritiva? E dentro do debate, vale frisar que o que há de concreto são pessoas não-binárias que têm tanto direito quanto todas as outras de serem representadas e incluídas pela língua.
(valem os grandes parênteses aqui que apesar de eu tratar com leveza e superficialidade o tema, o papo é muito sério. Sério a ponto de ter desperado reações negativas de políticos conservadores e sua infeliz “pauta dos costumes”. Deixo aqui o link de dois guias que encontrei online, um bem sucinto, do Orientando, ideal para nos situarmos num primeiro contato, e outro mais extenso e detalhado, do Medium de Ophelia Cassiano, para nos aprofundarmos no tema e na discussão.)
Procedimentos estéticos
Hoje caí numa conversa sobre procedimentos estéticos na qual me recordaram que no Brasil não pode haver publicidade com fotografias de antes e depois. A conversa acabou seguindo para como essa publicidade hoje é feita de forma indireta nas redes sociais pelas próprias pessoas que passaram pelos procedimentos. Não apenas o antes e o depois, especialmente o depois, são mostrados, como também todo o processo, a recuperação e todos os detalhes capazes de agradar a Algoritmo.
É interessante como a existência de um depois faça com que alguns se sintam mais confortáveis em expor o antes, que agora é memória. É como se revisitar essa memória sirva de gatilho para intensificar o retorno positivo do presente. De certa forma, o antes traz o depois dentro de si, com o desejo da mudança, e o depois traz o antes, com a alegria de não se estar mais com a antiga aparência.
E acho que assim entendi a questão do Nobel e da gramática. O cânon literário e a forma como usamos (ou devemos usar) a língua não são fotografias de antes e depois. São processos. São um feed com uma série de fotografias em que cada incremento é registrado num ciclo que se retroalimenta com cada chegada sendo um novo ponto de partida, microintervenção a microintervenção. E muitas imagens parecidas em sequência formam um filme. O cânon e a língua são entidades tetradimensionais assim como nós.
O ponto de origem já está difuso e não há linha de chegada.
A única linha é uma sequência de ovos que se tornam galinhas que botam ovos que se tornam galinhas que…
Abraços ictiomercuriais,
Thiago Ambrósio Lage (@thamblage)
P.S.
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Publiquei uma ficção-relâmpago de forma independente na Amazon essa semana. O nome da história é “A Bruxa Dança”. Este texto foi selecionado para ser traduzido e publicado em inglês na edição #000 da Eita! Magazine, e agora está disponível na Amazon em sua versão original para o público lusófono.
Em breve tem novidade minha nas revistas Égua Literária e Maçã do Amor. Fiquem atentos!
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