Com as mãos, acho que a maior parte de nós diria. Na real nem sei se mão é órgão. Outras pessoas escrevem com os pés, ou ditam com a boca. Mas isso tudo é como saem as palavras. A minha pergunta é literalmente (e metaforicamente) mais profunda: de onde vêm as palavras?
Juro que este não é um texto para escritores: o tipo de conteúdo que sempre planejei evitar. Escritores ou não, todos que me leem, escrevem. Se comunicam. E tenho me perguntando de onde vem o que projetamos.
Tem vezes que escrevemos com o coração. Expressamos o que sentimos, o que é verdadeiro para nós. Incontáveis vezes na carreira de escritor não ouvimos conselhos nesse sentido, de escrever o que te faz bem, o que te deixa à vontade, o que você ama. Colocar o sentimento para fora. Uma escrita vista como espontânea. É externar uma verdade e acreditar que outros corações entrarão em ressonância com ela.
Outras vezes, escrevemos com o cérebro. O sentimento dá lugar à precisão. É uma escrita que leva muito em conta o interlocutor, uma escrita que se constitui de escolhas bem deliberadas. É como escrevemos ao jogar para a plateia ou para a banca. É construir sequencialmente um texto, com intencionalidade até nos momentos em que se deseja transparecer uma espontaneidade. Tijolo por tijolo num desenho lógico-mágico.
Sempre vejo este tipo de embate no ofício da escrita, e ele se aplica também à postura em redes sociais, seja na construção da persona pública, seja nas tabelas de planejamento de conteúdo. Conteúdo cada vez mais personalizado e cada vez mais igual a todo o resto. Escrevo para mim ou para os leitores? Até que ponto pensar no público macula a minha essência? Até que ponto agradar a mim mesmo pode afastar o público?
Quem é este público? Leitores? Editores? Agentes? Seguidores?
Mas nosso corpo traz as complexidades de nossa psiquê, e outro órgão anda muito em voga como fonte de nossos dizeres: o fígado.
Chega de escrita emotiva ou racional, a onda agora é a escrita hepática. Nas redes, o fel goteja de indiretas, escorre em threads. Se o príncipe deve ser amado ou temido, o conteúdo que não conquista pela emoção ou pela razão, conquista pela raiva. O scroll infinito é um rio caudaloso de bile digital. Um conselho outrora estranho vira lugar comum: “lhe falta raiva”. Mesmo com tanta raiva lá fora, me falta raiva. Talvez seja isso: é preciso raiva para estar entre os raivosos.
Um filme que aborda esse rico mundo interno de forma bem lúdica é o Divertida Mente. Eu sempre brinco que meu Raiva é meio preguiçoso, mas o Medo e a Aversão (prefiro este nome a Nojinho, talvez uma manifestação desta emoção?) fazem hora extra. Coisas da mente ansiosa. Mas uma coisa que aprendemos(?) no filme é que o equilíbrio é a chave.
Toda comida de sal leva uma pitada de açúcar, toda receita doce, uma pitada de sal. O mel atrai abelhas, o vinagre, moscas. Mas para temperar a salada, talvez os dois juntos deem um bom molho. Não é à toa que temperar também significa equilibrar. O vidro temperado é mais resistente, o aço temperado, mais duro.
Não tem jeito: é preciso cabeça e coração. E fígado. E se precisar adoçar ou se estiver doce demais, que venha o pâncreas com uma dose de glucagon ou insulina. Se sobrar o sal, que os rins nos ajudem a eliminar o excesso. Estômago pra digerir e tornar mais simples uma ideia. Pulmões pra trazer novos ares, oxigenar o texto.
Só não vale fazer como uma certa família que só se expressa pelos intestinos.
Agora me diz, com quais órgãos você escreve?
Abraços ictiomercuriais,
Thiago Ambrósio Lage (@thamblage)
P.S.
O Incêndio na Escrivaninha, podcast que apresento junto das escritoras Ana Rüsche e Vanessa Guedes, retorna de uma pausa esta semana. Venha nos ouvir e conhecer nossa árvore de links.
Publiquei uma ficção-relâmpago de forma independente na Amazon. O nome da história é “A Bruxa Dança”. Este texto foi selecionado para ser traduzido e publicado em inglês na edição #000 da Eita! Magazine, e agora está disponível na Amazon em sua versão original para o público lusófono.
O podcast Pindorama gravou um episódio sobre o meu conto Malus restituta. O conto foi publicado na edição Convidados da Revista Maçã do Amor, e foi muito gostoso poder ouvir as impressões de um grupo de leitores sobre um texto pelo qual tenho muito carinho.
Obrigado pela leitura!
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