Nicho?
Esta é uma newsletter de crônicas. Descobri esta semana assistindo ao curso da Aline Valek no Doméstica (que super recomendo a quem queira fazer newsletter ou sistematizar a criação de textos). Semana passada, blasfemei contra Algoritmo, que forma com Nicho um par perfeito. Nicho gera engajamento, é o atalho para viver sob as bênçãos de Algoritmo.
Só que eu tenho problemas com Nicho. Sou generalista de coração. O prato deve ter várias cores para ser nutritivo. “Sei de quase tudo um pouco e quase tudo mal”. A tropeços, descobri que este é o nicho fora de Nicho: crônicas.
Sendo assim, trago uma crônica-crônica, escrita em uma oficina em 2020. Não me surpreendeu como está defasada. Resolvi manter o número de dias isolado, máscaras antivirais como o último grito da moda e a contagem do número de mortes. Os 240 dias passaram de 500, a antiviral deu lugar à PFF. Mas isso é bobagem quando pensamos que na época, 30 de outubro de 2020, havia pouco mais de 150 mil óbitos em decorrência da covid no Brasil e hoje, 1º de setembro de 2021, são mais de 580 mil .
Duas semanas depois da minha segunda dose de vacina, sinto (sentimos?) algo da culpa do sobrevivente. Ao reler o texto, percebo como tento desesperadamente usar a escrita e o humor como mecanismo para lidar com a dor, raiva e revolta. Não sei se funcionou na época e não sei se funciona hoje, mas tenho, temos, que continuar tentando. Cada um à sua maneira.
Temos um país para reconstruir.
A melhor cueca da sua vida e outras compras
Comprei uma cueca pela internet. Uma não, três. O anúncio dizia "a melhor cueca da sua vida" e inundava todas as minhas redes sociais. Detalhe que nem sou tão fã de cueca e… estou há quase oito meses praticamente sem usar. Sabe como é, nudismo caseiro (um salve aos vizinhos peladões!), pademia, trabalho remoto, morar numa cidade que bate fácil 30 graus todo dia…
Tudo começou, não com o corona, mas em 2006, o ano em que ativei meu cartão de crédito, "só para comprar passagens aéreas", depois de me mudar pro outro lado do país. Nem é tão para outro lado, já que agora estou bem no meio. E pensar que hoje não subo num avião nem de graça, nem nem que me paguem. Claro que não ficou só nisso, todo um mundo de compras online se abriu para mim: livros, livros importados (na era do dólar amigo). E com os anos, a necessidade e ofertas foram mudando para roupas grandes, livros, mochila de viagem, bota, livros, computador, bento box, leitor de livro elerônico, livros físicos e eletrônicos, máquina fotográfica… tudo que fosse complicado ou difícil ao vivo, estava a poucos cliques, doze dígitos e uma fatura de distância. Nos últimos tempos, vieram os deliveries de comida, muitas vezes de restaurantes do bairro, e produtos de lojas do outro lado do mundo (agora sim, literalmente), com os percalços de sites mal traduzidos e a loteria da alfândega na estadia em Curitiba.
Com a pandemia e o isolamento-distanciamento social quarentenesco (que já passou de duzentos e quarentenesco) e descaralhamento mental, a papelaria da esquina e a da China se tornaram equidistantes. Alguns cliques, doze dígitos e uma fatura. Coisas para preencher um vazio social de quem já era antissocial. E pra preencher um tempo livre que não foi.
O único tempo liberado foi o do transporte até o local de trabalho, 5 minutos para ir, 5 para voltar. A rotina de trabalho se manteve e o serviço doméstico aumentou proporcionalmente ao incômodo causado por não fazê-lo. Saudades de sair do trabalho, comer qualquer coisa na rua, chegar em casa e ir direto para o quarto sem tempo de contemplar o estado lastimável da sala ou da cozinha. Cozinha agora de uso contínuo no eterno ciclo de cozinhar, comer, limpar, guardar, recomeçar. No meio tem uma pausa pra cagar, mas deixei de fora da lista para não dar a entender que faço isso na cozinha. Agora pelo menos faço sempre no meu banheiro.
Taí um item pra lista das pessoas que têm a infeliz mania de ver o lado positivo na porra de uma panemia. Nature is healing, os humanos são o vírus, temos tempo pra família e agora eu cago todo dia no banheiro da minha casa. Grandes merdas. Mais de 150 mil brasileiros e sei lá mais quantas pessoas no mundo se foram para a mãe natureza nos ensinar uma lição e pra eu ter a alegria de usar meu banheiro todo dia. Me poupem.
Veio também uma nova necessidade: máscaras. E a mesma marca que insitia em me vender a melhor cueca da minha vida também tinha uma máscara genial, revolucionária, com elásticos que não prendem na orelha e antiviral. Claro, se eles tem um tecido que faz roupas anti-odor, um vírus seria fichinha. Quem anda de transporte público ou já pulou carnaval de rua sabe do que estou falando. No pedido de minhas máscaras high-tech baseada em tênues afirmações que me dão segurança mais psicológica que concreta, resolvi acrescentar umas melhores cuecas da minha vida no rolo. O famoso gastar o dobro pra pegar um frete grátis (que você nem pesquisa quanto seria e poderia economizar mais se não ouvisse o canto da sereia do e-commerce). Peguei logo três modelos diferentes, me perguntando qual deles seria a melhor-melhor cueca da minha vida.
Após algumas semanas, chegaram as tais super máscaras, psicologicamente perfeitas, tudo que eu precisava. E as tais cuecas. Melhores da vida. Cheguei a experimentar e usar alguns dias. Um dia cheguei a fazer a máxima transgressão do home-officer quarenter: participar de uma videoconferência de camisa e cueca. É realmente confortável, me deu a adrenalina dessa pequena transgressão mas… acho que infelizmente não é a melhor da minha vida.
A não ser que a use no dia em que for tomar a sonhada vacina.
Abraços ictiomercuriais,
Thiago Ambrósio Lage (@thamblage)
P.S.:
O Incêndio na Escrivaninha, podcast que apresento junto das escritoras Ana Rüsche e Vanessa Guedes teve um episódio muito sensível em que tratamos de Morte, com a participação de Laura Müller, médica especializada em cuidados paliativos. Nestes tempos em que as redes sociais são obituários, acho que vale à pena ouvir e refletir.
O título dessa crônica é uma brincadeira com o título da coletânea de Ted Chiang chamada A história da sua vida e outros contos. O conto A história da sua vida deu origem ao aclamadíssimo filme A chegada, mas meus contos preferidos do livro são o A torre da Babilônia e o 72 letras.
Aos poucos vou acertando o design da newsletter, não me odeiem por não estar mantendo um padrão por enquanto.
Por hora o plano é este papo ser quinzenal, sempre no dia e na hora de Mercúrio.
Para quem quiser me conhecer melhor, indico uma visita ao meu site. E se gostou de me ler e tem curiosidade sobre minha voz, sou um dos hosts do podcast Incêndio na Escrivaninha ao lado das escritoras Ana Rüsche e Vanessa Guedes.
Obrigado pela leitura!
Se gostou da newsletter, pode querer conferir o que tenho produzido como escritor em meu site, e como podcaster no Incêndio na Escrivaninha, junto das escritoras Ana Rüsche e Vanessa Guedes. E leiam as obras da Plutão Livros! Ou pode querer apenas me seguir nas redes twitter, instagram e facebook e ficar por dentro de minhas bobagens e novidades.