Lá vou eu falar de criação de novo. Imagino que sirva pra diversas áreas criativas além da escrita, ainda mais que o gancho vem de outra arte: escultura.
Escultura subtrativa
Um dia desses eu li algo sobre esculturas aditivas ou subtrativas. Nunca tinha parado pra pensar nisso, mas faz total sentido. Em trabalhos aditivos o escultor adiciona e molda o material, vamos supor argila, pra dar forma à sua ideia. Em trabalhos subtrativos, se inicia a partir de um bloco de matéria sólida, vamos supor pedra ou madeira, e o artista vai removendo partes aqui e ali até deixar somente o material que expressa sua ideia. No primeiro caso, pode-se dizer que a escultura é construída de dentro pra fora, e no segundo, de fora pra dentro.
Também existe o método construtivo, descrito em um lugar como sinônimo do aditivo e em outro como um terceiro método em que diferentes elementos são adicionados de forma semelhante a uma colagem 3D, mas isso é papo pra outra hora.
Escrever é algo que à primeira vista parece aditivo, mas no fundo é subtrativo. E não digo apenas do processo de edição (que pode ser considerado como modelar o material-palavras que foi adicionado). Pra escrever, subtraímos as coisas em nossa mente. Isso ficou gritante pra mim quando comecei a escrever e levar mais a sério a newsletter.
Eu vim da academia, né? E muito do padrão do texto é "escreva tudo que você sabe ou resuma tudo que já foi publicado sobre tal assunto". Algo meio impossível de ser feito, mas a gente se ilude. Ou começa a entrar num recorte temporal e citar apenas os trabalhos mais recentes, confiando que eles sintetizam o que veio atrás. Afinal de contas, cientista é um povo que vive sentado em ombros de gigantes.
Ao vir pra estes textos de não-ficção, breves comentários mais ágeis, o "deixar de fora" me consome. Na última edição da Mercúrio em Peixes eu deixei tanta coisa de fora que poderia facilmente ter escrito o dobro. Mas o texto é subtrativo. Eu começo a desbastar o bloco mesmo antes de abrir o notebook. Selecionar um tema é negar todos os outros. E elencar os pontos que vão figurar no texto envolve deixar outros tantos de fora. E mesmo depois de escrito, tem coisa que sobra.
Eis o grande paradoxo da ansiedade dos anos 20: ser breve na velocidade das redes e ser mal interpretado ou ser preciso e entediar a audiência? Porém, tem um outro elemento com o qual tenho me familiarizado: a gente lida melhor com coisas incompletas do que imaginamos. Na real, às vezes até preferimos representações incompletas a cópias fiéis.
O grande exemplo disso na escrita são os diálogos. Um diálogo ultrarrealista, uma conversa transcrita, seria algo horrível de se ler. Enfadonho, repetitivo, cheio de elementos conectivos desnecessários. Quando lemos um bom diálogo, o que lemos é uma representação. Algo que simula pra nós um diálogo natural, mas sem os elementos que nos afastariam de um. Mentalmente completamos com facilidade a textura fina que vai dar a ilusão de realidade.
Uma lei da Gestalt, representação e simplificação
Isso me lembra do de um dos fundamentos/leis da Gestalt, o fechamento. Ele é a nossa capacidade de preencher lacunas mentalmente e fechar formas, vendo objetos completos onde não existem. Nem preciso trazer uma imagem como exemplo: basta pensar numa linha tracejada. Que linha? São apenas pequenos segmentos de linha enfileirados, entretanto enxergamos uma única linha tracejada.
Tenho um livro de origami, o Creative Origami de Kunihiko Kasahara, no qual o autor explica como os modelos são criados e entra numa discussão sobre representação e simplificação. Uma girafa com apenas três pernas, duas dianteiras e uma traseira, é um modelo bem mais fácil de dobrar que uma girafa com quatro pernas, rabo e chifres (ou seja lá como se chama aquele chifrinho das girafas). Dependendo do seu objetivo, uma girafa de três pernas basta, mesmo não sendo uma representação fiel. O que não pode faltar é o pescoço comprido. E assim damos um salto em que a quarta perna da girafa não faz falta, da mesma forma que os nés, hums e ãns no diálogo.
Espaços negativos, ausências que limitam
Além de deixar algo de fora pra evitar o excesso de informação, debastar/lapidar o texto pronto e suprimir detalhes confiando no fechamento gestáltico, a ausência tem mais um papel na criação: o espaço negativo como elemento de composição. Estudando desenho aprendi este conceito, seriam as áreas vazias/desinteressantes de uma composição. Elas não apenas delimitam as áreas de interesse, mas trazem equilíbrio pra imagem. Só percebemos algo por contraste, e a ausência está ali revelando o que está presente e acaba tendo um peso tão importante quanto a presença pra a evocação de um efeito. Expandindo pra outras artes, comecei a entender que a música também é feita de silêncio e que numa escultura por subtração o que se observa é o limite entre o que é escultura e o que não é, no caso o resto do universo sendo todo o espaço negativo
No texto, isso funciona pra mim com os silêncios, palavras e temas evitados. Quando conversamos com alguém e a pessoa nunca toca em determinado assunto, isso diz muito sobre ela. Claro que existem recursos e desafios específicos, especialmente relativos à forma (um beijo, Oulipo!), mas perceber as ausências no conteúdo também é algo que amplia a compreensão dos textos. Escolher de forma consciente o que deixar de fora de um texto ajuda a delimitar suas fronteiras e a sua imagem.
É como arrumar uma mala e na impossibilidade de levar o guarda-roupas, selecionar o que é mais adequado a seu destino.
E assim viajar — e criar — mais leve.
No mais, sem mais,
Abraços ictiomercuriais,
Thiago Ambrósio Lage (@thamblage)
Drops
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Que tal fazer a sua própria girafa de três pernas? Tem tudo aqui nesse tutorial explicadinho em vídeo.
Outros planetas, outros metais, outros signos, outros animais
Quero recomendar mais as newsletters dos amigos e colegas, e dei um nome poético (e provisório) pra essa seção seguindo o exemplo da Vanessa Guedes da Segredos em Órbita. Hoje trago duas newsletters com visões sobre ausência e vazio: a primeira da própria Vanessa e a segunda de Ana Rüsche, companheiras de podcast, escrita e leitura, amigas sem as quais este e outros textos jamais atingiriam sua melhor forma. Muito obrigado!
Obrigado pela leitura!
Se gostou da newsletter, pode querer conferir o que tenho produzido como escritor em meu site, e como podcaster no Incêndio na Escrivaninha, junto das escritoras Ana Rüsche e Vanessa Guedes. Ou pode querer apenas me seguir nas redes twitter, instagram e facebook e ficar por dentro de minhas bobagens e novidades.
Thiago, penso exatamente como você. Não tinha pensado na figuração gestaltica e faz muito sentido. Não dizer tudo é também permitir que o leitor se diga através do nosso texto. Afinal, é isso que nos convida ao texto do outro... A possibilidade de caber ali.
Obrigada por este texto.
Fui entendendo isso ao longo da vida acadêmica. No começo queria mostrar todas as relações entre as coisas e o meu processo de chegar nelas. Mas percebi lendo o trabalho das outras pessoas que isso deixava muito enfadonho. Aprendi a lapidar e hoje sou bem sucinta- algo até meio mal visto nas humanas hahaha mas prefiro assim. Adoro seus textos, um beijo