Flip, vulgo carnaval literário
meu retorno a Paraty quatro anos depois, num relato caótico
Voltando da Flip 2023, mais morto que vivo, ajudo a compor esta colcha de retalhos que está a pós-flip no substack, caleidoscópio de impressões e relatos de um evento único e múltiplo. Motivos para não ir eram muitos, tanto pela distância (vivo em Palmas) quanto por minha ocupação primária (sou professor e… novembro é complicado), sem falar no custo (tanto para chegar quanto de hospedagem e alimentação). Mas os motivos para ir superam tudo: o amor pelos livros, pela escrita e a necessidade de estar novamente entre os meus depois dum intervalo de quatro anos (estive na Flip de 2019, a minha primeira).
Cheguei a Paraty na quarta-feira às 06:00 e saí domingo pouco antes da meia noite. Foi divertido ver a cidade vazia, a cidade encher, a cidade lotar, a cidade esvaziar. Me lembrou a maré que enche algumas ruas da cidade, ou a pulsação de um coração de uma só cavidade. Nós, hemácias da literatura, entrando nesta imensa câmara de trocas num quadriculado de ruas-artérias pedregosas, e depois voltando cada um para seu órgão-cidade de origem alimentado, oxigenado. A vontade de escrever se fortalece depois deste tempo entre pessoas apaixonadas por livros.
Cinco dias de festa, mais de uma vez falei e ouvi comparações ao carnaval, que para mim também tem cinco dias. Sim, eu conto a quarta-feira de cinzas. E assim como o carnaval, nosso último dia, o domingo de cinzas é bem agridoce. Rodar pelas ruas e sua população minguante, a cidade voltando ao turismo de sempre, as pernas já obedecendo mais por costume que por disposição com dores em articulações que eu nem sabia que tinha… Tudo isso com a sensação residual da folia no corpo, as falas ainda nos ouvidos. E o único duplo pensamento: que (bom/pena) que acabou, (eu não aguento/ano que vem tem) mais. Tenho um conto que começa com a frase "Um ano é o intervalo entre duas terças-feiras de carnaval". Termino a viagem com a sensação de que o ano literário é o intervalo entre dois domingos de Flip.
Na Flip impera a desorientação no tempo e no espaço. Tanto que comecei o relato pelo começo, continuei pelo fim e retorno pelo meio. Se perder — e se encontrar consigo e com os amigos — pelas ruas de Paraty é uma experiência obrigatória. Tudo acontece ao mesmo tempo, e claro que eu fiz uma programação pessoal para ser sumariamente ignorada ou substituída ao sabor do momento. Ir de uma casa a outra era sempre o risco de esbarrar num amigo (ou fazer um novo amigo) e ir parar num terceiro destino. Ou parar para tomar um sorvete ou um café. Ou uma chuva. Como tomei chuva. Nestes dias festivos eu me fantasiei de beija-flor, voando de um canto a outro provando aqui e ali os saberes, risadas e abraços. No imperativo voo constante, encontrei pouso em alguns portos seguros, em especial na Casa Queer.
Se na cacofonia (cacografia?) do meio literário é difícil encontrar pertencimento, tudo que meus pés e asas cansados precisavam era de uma moderna bandeira da diversidade, um bar animado, mesas super pertinentes, umas boas cadeiras de madeira ao fundo e um ambiente de segurança e acolhida. Meus dias ou começavam, ou passavam por, ou terminavam na Casa Queer. E assim vou me entendendo não só como escritor, rótulo difícil de se apropriar, mas também como escritor queer, de literatura queer, entendendo que minhas obras fazem parte de um contexto e cultura maiores, compartilhados por pessoas com vivências e opressões parecidas e diferentes, que de alguma forma estão sob o mesmo guarda chuvas colorido e salpicado de letras LGBTQIAP+. Mas isso pode ser assunto pra outra hora: na Flip não posso me demorar muito em nada.
De casa em casa, pousei na Casa LIBRE + Graviola digital para participar de uma mesa. Falei sobre literatura e ecologia ao lado de três mulheres maravilhosas: Ana Rüsche, Gisele Mirabai e Sandra Abramo. Foi minha segunda Flip, estive no evento em 2019 quando só fantasiava em estar do outro lado da mesa, ou em ter algo publicado. A sensação de progresso me aqueceu o coração, tijolo por tijolo num desenho lúdico. Durante a mesa, uma tempestade caiu após um calor sufocante, ilustrando nossas falas sobre crise climática. Ganhamos como lembrança simpáticas velas da Graviola digital, e mal sabíamos que em poucas horas participaríamos do evento marcante desta Flip: o apagão.
Se hoje já compartilhamos histórias de "onde você estava e o que fazia quando a luz acabou na Flip?", na hora foi bem menos divertido. Eu de certa forma não me importei tanto, cruzei a cidade atrás de uma festa no breu, guiado pela lanterna do celular. Mas a festa era outro dia e dei de cara na porta; no caminho de volta, achei um bar, que passou a ser o "meu" bar de todo dia, e por lá acampei tomando umas cervejas ao lado de minha vela devidamente acesa. Ponderei que logo meu celular ficaria sem bateria e teria que voltar pelas ruas escuras segurando a minha vela numa procissão solitária. Por uma noite eu poderia ser uma assombração ainda em vida. Gostei da ideia. A energia voltou, mas decidi que voltaria com minha vela mesmo assim. Ao dar três passos para fora do bar, uma gota certeira extinguiu a minha chama, e meus sonhos de assombrar foram adiados.
Ainda nesta cronologia da simultaneidade, curti o lançamento de livros de amigos, conheci e abracei pessoas queridas que até então só existiam em telas. Dentre os que se materializaram, novos ou velhos conhecidos e amigos, posso citar: Kaíque Coelho, Fábio Fernandes,
, Guilherme Jacobson, Úrsula Antunes, , e os lindos escambanautas (que já me editaram e tocam a aqui) Gabi OZ, Wilson Júnior e Moacir Fio. E claro a amiga de todas as horas, melhor companhia e maga da fotografia,! Tem muito mais gente que deveria estar na lista, peço desculpas por não escrever o nome de todos. Podem puxar minhas orelhas nos comentários!Teve troca zines!
Produzi uma pequena coleção de seis zines (pequena mesmo, eles são menores que um A7) antes da viagem. Levei alguns para distribuir no evento na Bandeirola no fim de semana antes da Flip, e levei alguns para a Flip (o processo deles e detalhes devem vir numa edição futura da Mercúrio em Peixes, ou no instagram). Zanzando pelas ruas, me ofereci para bater uma foto de uma desconhecida e ela me deu um zine pela simpatia. Logo saquei minha mini coleção da bolsa e retribuí a gentileza. Nos fotografamos, trocamos arrobas e postamos. E poucas horas depois descobri que Lívia Aguiar já era conhecida por amigos meus, e até mesmo uma de minhas irmãs. Aqueles encontros meio predestinados. Também troquei zines com a Gabi OZ que acompanhou um pouco pelas redes o nascimento dos meus.
Todo carnaval tem seu fim
No fluxo do domingo de cinzas, uma nova Paraty se mostrou para mim. Alguns comércios já abriam mirando no turista tradicional, e ao passar pela rua da Lapa pela milésima vez, pela primeira vez eu reparei num muro e numa porta.
As portas de Paraty são famosas e fotogênicas, mas esta parecia destoar de todo o resto. Como a maré que ao descer expõe segredos da terra, do mar e do mangue; na ausência dos flipeiros, o muro quase em ruínas cercando um terreno vazio, a porta apodrecida e o número meio apagado e remendado se mostraram para mim. Acho que um prenúncio da volta à dura vida real depois de me cobrir de tanta fantasia e literatura por estes cinco dias.
Mas se o melhor da festa é esperar por ela, já espero a Flip 2024 desde hoje. Nos vemos lá?
No mais, sem mais,
Abraços ictiomercuriais,
Thiago Ambrósio Lage (@thamblage)
Gotas de mercúrio
Meu conto Seis Estrelas, que saiu na revista Escambanáutica, está disponível na Amazon! No conto acompanhamos Míriam, uma motorista-fantasma de aplicativo que roda nas noites de Belo Horizonte e hoje, dia 01/12/23, esta e outras edições da revista estarão de graça!
O conto que citei no corpo da newsletter se chama Carnaval Encarnado, e está disponível na revista A Taverna.
Romantífica (vulgo meu livro mais recente) está no mundo! No livro trago contos que exploram a interface entre ficção científica, romance e relacionamentos (explico um pouco aqui). Quer comprar o seu exemplar? Basta acessar o site da editora.
No dia 18/11 estive na casa da Editora Bandeirola com a Sandra Abramo, George Amaral, Ana Rüsche, escritores, leitores e participantes do Filamentos. Foi uma tarde bem gostosa, eu e o George autografamos livros, pude conhecer mais pessoas “da internet” reforçar laços criados digitalmente durante o período pandêmico! A Bandeirola está com um financiamento coletivo no ar de dois livros: o Manual de Sobrevivência na Escrita da Ana e do George, e o Escrever para quê?, de organização da Sandra. Acho que vale à pena conhecer e apoiar, eu já apoiei!
E por último mas não menos importante: sei que a news anda mais espaçada do que deveria, mas é porque este semestre a vida aconteceu demais e tive que priorizar outras coisas. Mas vem coisa boa pro ano que vem!!!
Outros planetas, outros metais, outros signos, outros animais
Já tem mais relatos da Flip rolando pelo Substack!
Obrigado pela leitura!
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Minha Flip só existiu pela tua também estar lá. Obrigada por ser a melhor companhia do mundo naquelas pedras com desígnios próprios 💙
Que experiência bacana e bem descrita, comentada, filmada!!