Eu infanteci nos anos 80, nos exóticos e selvagens anos 80. Entre carros de todas as cores, pessoas seminuas fazendo aeróbica na TV e inocentes cigarrinhos de chocolate. E pega-varetas.
Refrescando a memória de quem tem, ou construindo uma nova pra quem não tem, era um jogo simples: varetas coloridas eram deixadas cair juntas formando uma pilha emaranhada. A cada vez uma criança pegava uma vareta, mas com algumas regras:
Só podia tocar na vareta que fosse tentar pegar;
As outras varetas não poderiam se mexer;
Poderia usar uma vareta que já pegou para mover a vareta que fosse tentar pegar;
Se conseguisse pegar uma vareta, podia tentar pegar outra.
Quem quebrasse uma das duas primeiras regras, perdia a vez e passava ao próximo. Se pegasse uma segunda vareta, podia tentar de novo, de novo e de novo até errar ou as varetas acabarem. As varetas eram coloridas, cada cor com um valor em pontos. A preta valia mais: valia 50 pontos e era a única.
Era um jogo pra treinar cirurgiões, era um inferno. Ou eu que era estabanado demais ao contrário de minhas irmãs. Décadas depois fui fazer as pazes com a minha destreza manual, mas agora titulando ácidos, pesando reagentes e fazendo estrias em placas de petri, mas isso é papo pra outra hora.
Hoje disse pela milésima vez nos últimos tempos que tenho tido semanas difíceis, puxadas. Porque a vida é um jogo de pega-varetas e tem varetas demais na minha mesa.
A pilha tá de um jeito que é difícil escolher por qual vareta começar. Tem umas mais importantes, mais valiosas, diria essenciais. Mas estão soterradas por outras tantas que beiram a irrelevância. E também por outras cuja relevância é só estar no caminho.
Às vezes me distraio e tenho certeza que brotam mais varetas na pilha. Às vezes me concentro tanto em tirar uma, que mudo a posição de todas as outras e minha estratégia é perdida.
Tem vareta difícil, que suo horrores pra pegar e vale tão poucos pontos que me pergunto se não era melhor ter passado a vez. Mas aí lembro que o pega-varetas da vida tem uma regra variante: eu sou o próximo jogador também.
Pegar vareta de 50 pontos é algo mais movido pelo desejo que pela necessidade. Vale à pena arriscar tanto, se mesmo com ela em mãos eu não tenho garantia de ter ganho o jogo?
Ganhar contra quem? Contra o quê?
Esquece tudo.
Não, a vida não é um jogo de pega-varetas. Ela é uma partida de tetris. O jogo de pega-varetas termina quando acabam as varetas. O tetris termina quando termina. E não é só isso, mas antes, vamos refrescar de novo a memória. Mas antes um video que amo:
Descrição: uma animação em stop motion de pessoas sentadas num teatro simulando um jogo de tetris (sendo as pessoas os quadrados que compõe as peças e vão “caindo” pela tela. A descrição do jogo de forma geral segue adiante)
O tetris é um jogo eletrônico em que peças formadas por quatro quadrados (tetraminós) caem do alto da tela num "poço". Você vai ajeitando as peças à medida que caem, e sempre que uma linha horizontal é formada com os quadrados, ela some. Quanto mais tempo passa jogando, mais rápido as peças caem, e a única certeza é que em algum momento o poço será preenchido e você perde. Então porque jogar se a derrota é uma certeza? No jogo do tetris acho que entendi na prática que a jornada realmente vale mais que o destino. No fim do jogo você não perde: a partida termina. No jogo da vida, a gente não ganha nem perde, ele só termina.
Mas as peças sempre vêm: demandas do trabalho, da família, de amigos, pessoais. O drama que o (jovem?) adulto moderno passa com trabalhar, fazer atividade física, limpar casa, se alimentar bem, se divertir, ter um hobbie, etc. Além das peças que existem porque existem (como boletos, questões de saúde) ainda tem as peças que criamos pra nós mesmos (aquela atividade paralela ou hobby gostoso que acaba virando compromisso ou profissão secundária).
Tem peças que são tão malandras que vão puxando outras… comece a escrever que logo terá que ser seu próprio social media, por exemplo.
Uma jogada particularmente satisfatória é quando você tem uma peça que são os quatro quadrados alinhados e um espaço assim na vertical. Quando ela encaixa, quatro linhas somem de uma vez. Fatiar a vida em semestres letivos é assim. Não conte com professores para nada em junho ou novembro: estamos esperando essa peça para ter um respiro no fim do semestre. Mas rápido, porque as peças não param de cair.
E a vida é só isso? Encaixar peças para que elas sumam? E quando que a gente vive mesmo?
E eu sei? Se o jogo é a jornada, o máximo que consigo fazer é acrescentar peças boas por minha conta, mas que contribuem para preencher meu poço da mesma forma que peças obrigatórias. Como o poço transborda de toda forma, desejo pelo menos ter um pouco de autonomia com o que o preencho e me divertir no caminho.
E você, com quais peças tem preenchido seu poço? Tem sobrado energia para ter suas peças pessoais? Em quais momentos conseguiu desfazer quatro linhas de uma vez?
No mais, sem mais,
Abraços ictiomercuriais,
Thiago Ambrósio Lage (@thamblage)
Drops
Romantífica (vulgo meu livro mais recente) está no mundo! No livro trago contos que exploram a interface entre ficção científica, romance e relacionamentos (explico um pouco aqui). Quer comprar o seu exemplar? Basta fazer o pix e preencher este formulário que mando um pra você! Ou se preferir, pode comprar no site da editora.
Eu não vi o filme Tetris ainda, e nem sei se verei. Ando super preguiçoso pra ver filmes. Mas devia ter aproveitado o momento pra linkar, né? Se viu, me diz se é bom.
Repensando horrores os rumos da newsletter, em ir pra textos mais curtos e frequentes, mas aí pegando… temas? Temporadas? Listas? Porque escrever com muita frequência me assusta pela falta de assunto e acabar tendo que falar da minha vida, que é bem pacata e desinteressante. Pensando em mexer na estrutura também e tirar esse rodapé gigante que imagino que pouca gente leia.
Não coube na news uma curiosidade: o registro do uso de tetris como um verbo na língua inglesa. Aqui em português eu já ouvi mais de uma fazer “fazer um tetris” ou “jogar tetris com …” no sentido de encaixar coisas com alguma dificuldade e de forma habilidosa.
Seguindo a tradição, mais uma playlist pomodórica com mais ou menos 25 minutos. Dessa vez, videogame! Dessa vez peguei trilhas de jogos famosas e/ou que eu curtia, colocado a versão “do jogo” e uma outra versão em seguida. Espero que curtam!
Obrigado pela leitura!
Se gostou da newsletter, pode querer conferir o que tenho produzido como escritor em meu site, e como podcaster no Incêndio na Escrivaninha, junto das escritoras Ana Rüsche e Vanessa Guedes. Ou pode querer apenas me seguir nas redes twitter, instagram e facebook e ficar por dentro de minhas bobagens e novidades.
A vida é um jogo de pega-varetas
adorei o texto. no momento sinto que minha vida está uma partida de uno e acabei de receber um comprar +4 cartas, mas minha mão já está cheia.
um beijo
Muito interessantes as analogias da vida com pega varetas e tetris. Nunca fui bom em nenhum dos dois, o que talvez explique algumas coisas, hahaha.
Mas o que explodiu minha cabeça na edição de hoje foi o termo tetraminó! Nunca tinha feito essa ligação de dominó com o número dois.